Quadrinhos

Powerpaola usa a vida como matéria-prima na nova novela gráfica 'QP'

A quadrinista mescla autobiografia e ficção para narrar um relacionamento em transformação

Luana Nova
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Luana Nova
Publicado em 25/06/2018 às 13:41
Foto: Divulgação / Editora Lote 42
A quadrinista mescla autobiografia e ficção para narrar um relacionamento em transformação - FOTO: Foto: Divulgação / Editora Lote 42
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Na Sala Aberta, em São Paulo, onde expunha alguns desenhos inéditos, a equatoriana radicada em Buenos Aires Paola Gaviria, conhecida na cena quadrinística como Powerpaola, tomava um chá enquanto concedia esta entrevista, numa manhã de sábado. Em um momento intimista e franco, tal qual as suas narrativas, ela fala sobre a vida, a adaptação da HQ Vírus Tropical para as telas, e a nova novela gráfica QP (Lote 42), que mostra, corajosamente, um relacionamento em transformação.

ENTREVISTA

JORNAL DO COMMERCIO — Paola, suas histórias abordam sempre questões íntimas e relacionais. Ao menos é assim em Vírus Tropical e agora no QP também. Você sempre pensou em seguir por esse caminho?

POWERPAOLA — Creio que meu entusiasmo vem de contar o que se passa comigo. O que passa ao meu redor. Antes tratava de ser mais fiel à realidade, agora eu faço algo mais como uma autoficção. Minha matéria-prima é a autobiografia, mas a partir disso posso criar o que eu quiser. Faço uso de alguns elementos surreais porque também quero que os leitores interpretem as histórias com as suas próprias realidades. Cada vez isso me interessa mais, ser menos explícita. Já fiz trabalhos colaborativos de outros gêneros, mas não me entusiasmam tanto. Gosto mesmo é de retratar o que me move por dentro e que preciso colocar para fora.

JC — Quando começou a querer criar histórias em quadrinhos? Houve algum momento ou influência-chave?

POWERPAOLA — Sou artista plástica e fiz apenas pinturas por muito tempo. Mas minhas pinturas já tinham texto. Sempre fui de levar um caderninho por aí, onde anoto coisas, faço desenhos, rascunhos, esboços. Mas foi quando eu estava morando na França que uma vizinha me disse: 'ah, seus trabalhos têm muito a ver com os quadrinhos'. E eu não lia quadrinhos até então. Havia lido quando criança, mas não era algo que me interessava muito. E aí ela passou a me emprestar alguns quadrinhos, como os de Jimmy Corrigan, que para mim era algo completamente novo. Então passei a ler mais, a ir em lojas especializadas. E os que mais me atraíam eram os feitos por mulheres e os desenhos que não seguiam tanto a linha realista, que tinham mais personalidade, fossem mais grotescos. E quando li O Diário de Nova York, de Julie Doucet, eu disse 'claro, é isso que eu quero fazer da minha vida'. Parecia que o que eu estava tentando fazer com a pintura, o que foi interessante em seu momento, deixou de ter todo o sentido ali.

JC — Quem ou o quê são as suas principais referências e fontes de inspiração nas HQs?

POWERPAOLA — Tenho muitos lados. Marjane Satrapi (Persépolis), para Vírus Tropical, foi essencial. Mas para QP, que fiz antes, durante e depois de Vírus Tropical, foram referenciais Julie Doucet e Aline Kominsky-Crumb. Também autores da literatura. Passei a ler muitas coisas autorreferenciais. Lia Gregor Von Rezzori, Susan Sontag, Patti Smith... Me passou a interessar muito as pessoas que usavam sua vida para trabalhar. Isso tanto na música, quanto no cinema, na pintura...

JC — Como se dá sua metodologia de trabalho? Começa a trabalhar a qualquer hora do dia ou possui um ritual, digamos assim?

POWERPAOLA — Cada projeto tem sua própria metodologia. Nem todos são iguais. Como falei, eu gosto muito de levar um caderninho para onde vou e desenhar tudo o que vejo, tomar notas. Em Vírus Tropical, eu pensava que não havia feito nenhum rascunho, mas tenho dois ou três caderninhos nos quais eu já havia criado algumas coisas, só que eu não gostava de nada. Mas geralmente eu penso o desenho e o texto ao mesmo tempo e vou me deixando levar. Vou tendo como umas ideias claras de como fazer as primeiras dez páginas. Faço tudo com lápis e logo depois passo a tinta. Eu gosto de ter a obra pronta à mão, só depois que escaneio, limpo... Utilizo o mínimo possível o computador. Como ultimamente não tenho tido muito tempo para ficar tranquila, sentada em casa, na minha oficina, tenho trabalhado em salas de espera, em cafés... Isso para ilustrar. Para os quadrinhos eu necessito de solidão.

JC — No QP conseguimos ver diferentes estilos seus. Alguns desenhos mais simples, outros mais exuberantes, algumas coisas com aquarela também…

POWERPAOLA — Eu creio que minhas grandes influências começam pela minha casa. Meu pai tinha muitos livros religiosos, já que ele foi sacerdote. Então ele tinha muitas pinturas antigas, arte românica, arte medieval... E à minha mãe lhe fascina a arte popular. Vivíamos no Equador, então haviam muitas coisas de arte primitiva, naïf. Eu gosto de desenhos que podem ser muito simples, dos artistas de "art bruta" ou "outsider art". Já na escola, na Bellas Artes de Medellín, onde eu estudei por cinco anos, comecei a me influenciar muito por Basquiat.

JC — Tenho duas curiosidades sobre QP. Uma é como você e “Q” se conheceram e a outra é se há alguma razão específica para publicar essas histórias exatamente seis anos após o fim do relacionamento, igual ao período do tempo (2006 - 2012) que é retratado na HQ?

POWERPAOLA — No total, passamos nove anos juntos. Nós nos conhecemos em Cali quando eu estava estudando artes. Eu tinha 21 anos e ele foi tipo o meu primeiro namorado de verdade. Depois nos separamos porque eu vivia em Medellín e ele em Cali e nós não tínhamos como nos ver. Depois eu me mudei para a França e ao longo do ano ele foi para lá. Nisso, voltamos a ficar juntos e foram oito anos que passamos inseparáveis. A história do QP só começa em 2006 porque foi quando eu comecei a fazer quadrinhos. Antes eu era pintora. Bom, agora é que a HQ está saindo no Brasil, mas em espanhol ela foi publicada praticamente no mesmo mês em que nos separamos. Uma editora me abordou e eu não pude deixar passar a oportunidade de coletar e de reunir todos esses quadrinhos. QP também vai sair na França neste ano e espero que essa história siga tomando vida.

JC — Outra questão é que num dado momento do livro você menciona "ainda não sei onde quero viver". O que te levou a se estabilizar em Buenos Aires? Ou você pretende ainda se mudar mais vezes?

POWERPAOLA — Trato de viver o presente. Não me faço muitos questionamentos do que vai passar comigo porque tudo sempre foi muito mutável. Eu gosto muito de Buenos Aires porque tenho muitos amigos ilustradores. Me reúno com eles para conversar e desenhar duas a três vezes por semana. Há exposições, festivais de fanzines. É uma cidade muito viva.

JC — Você também menciona que diversas vezes os quadrinhos feitos por mulheres tendiam a ser reduzidos ao "feminino". Acha que esse panorama mudou?

POWERPAOLA — Juro que está mudando pouco a pouco. Eu não gosto desses estereótipos do que é o feminino e o masculino. Me chamam atenção as pessoas que podem tranquilamente usar seu feminino e seu masculino. Há muitos homens que trabalham de uma maneira "feminina". E não vejo isso como algo negativo. Mas no momento em que escrevi essa história a única coisa que parecia que podiam falar sobre o trabalho de uma quadrinista era isso. Nunca perguntamos a um homem sobre seu trabalho "masculino". E penso que talvez o que minha geração tenha feito foi se autoconhecer para poder começar a narrar. Creio que nessa geração o que estão fazendo é outra coisa. Estão evoluindo. Quando eu comecei a fazer quadrinhos haviam poucas garotas. Ou pelo menos eram poucas as que se viam no panorama. Não sei, poderiam estar escondidas dentro de suas casas escrevendo e desenhando, claro.

JC — Você também se mostrava ser uma jovem ansiosa, um pouco angustiada, com relação a onde a sua arte poderia te levar. Como se sente, tendo triunfado no quesito de ser uma mulher criativa e independente?

POWERPAOLA — Creio que uma pessoa nunca está inteiramente satisfeita. Nesse dado momento eu sofria muito porque tinha que trabalhar com outras coisas para sobreviver. Então ficava com muito pouco tempo para desenhar e era a única coisa que eu queria fazer. “Q” foi uma das pessoas que me disse 'deixe de trabalhar e se dedique somente aos seus desenhos'. A princípio, muitas pessoas que liam as minhas histórias diziam que eu não contava nada, como se toda narrativa precisasse ter começo, meio e fim. E eu conto histórias cotidianas que não tem ponto final. São contemplativas. E isso existe na literatura, no cinema. Por que não poderia haver nos quadrinhos? Comecei a acreditar nisso. Durante muitos anos, ilustrei para poder sobreviver. Trabalhava com livros, campanhas, milhões de coisas. Aprendi muito nessa época, foi como uma carreira. E me fez começar a investigar coisas que jamais havia pensado em desenvolver. Me sentia muito afortunada por poder viver disso, mas sentia que também gastava todas as minhas energias. Quando eu queria fazer meus próprios projetos, estava esgotada. Então, nunca é uma situação perfeita. 

JC  — E quais são os projetos que estão nos seus planos no momento?

POWERPAOLA — Ah, são tantas coisas ao mesmo tempo. Estou fazendo um livro que vou publicar no México, em setembro. É de todos os meus desenhos que faço enquanto espero. E esse é o mais natural. É tipo o menos conhecido do meu trabalho porque o faço mais como um exercício de observação. Também estou fazendo uma novela gráfica só de bicicletas. E uma outra que é um diário de todos os festivais pelos quais eu e Santiago (Caicedo) passamos com a animação Vírus Tropical. Está muito divertido, se passa em diversas cidades e é composto por anedotas que ocorreram com todos nós da equipe. Ainda estou trabalhando em um projeto de ilustração sobre mulheres. As coisas somente de ilustração cada vez faço menos, mas as coisas que aceito tem a ver com o feminismo, com coisas políticas. É um ativismo de alguma maneira também.

JC — Sobre a animação Vírus Tropical. De onde veio a ideia de levar a HQ para as telas?

POWERPAOLA — Santiago Caicedo, o diretor do filme, é um amigo meu da França. É o namorado da minha melhor amiga, que fez a música da animação. "Q" fez o roteiro. Somos todos amigos, artistas plásticos. Eu e Santiago já havíamos trabalhado juntos em um curta (Uyuyui!), e quando eu terminei a novela gráfica ele me instigou a fazer a animação. Participamos de alguns editais na Colômbia, ganhamos para fazer o teaser, depois para a produção. Bom, cada um tinha a liberdade para fazer o que quisesse. Já sabíamos que queríamos ser muito fiéis à novela gráfica, mas também podíamos criar a partir disso. "Q", por exemplo, tirou tirou algumas coisas do roteiro, mas acrescentou outras, como o diálogo de quando conheci minha família. Ele conhecia minha história muito bem, então não era tão difícil. Foi tudo feito de uma maneira bem orgânica, entre amigos.

Virus Tropical - Trailer from Timbo on Vimeo.

JC — O que foi mais difícil de fazer nessa adaptação e por quanto tempo trabalhou em cima dela? Precisou mudar a técnica de desenho para que a obra pudesse ser animada?

POWERPAOLA — Eu fui a diretora artística do filme e desenhei durante cinco anos. Fiz tudo de novo. Os desenhos poderiam funcionar a partir da novela gráfica, mas quis refazer tudo. Para que o filme se tornasse uma outra coisa. E eu fui bastante experimental, usei materiais como lápis, marcadores, tintas, aquarelas.

JC — Você participou da residência da Revista Baiacu (de Laerte e Angeli). O que achou da experiência?

POWERPAOLA — Para mim foi como uma especialização, uma pós-graduação acelerada. Foram 15 dias, 15 artistas, cada um com 15 páginas. Nos tornamos muito amigos, aprendemos um com o outro. Foi super bonito poder conviver com essas pessoas e desenhar o dia inteiro. Saber que cada um tem sua maneira, seu ritmo, é muito interessante. Lá, tinha gente que estava tentando entender o que queria fazer, outros que começaram a fazer uma coisa, não gostaram e fizeram outra. Muitas coisas que fiz lá foram o motor para fazer a novela gráfica das bicicletas.

Fofinhas ????

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JC — Você está expondo alguns desenhos inéditos aqui na Sala Aberta (SP). O que eles representam?

POWERPAOLA — O quadrinho da Baiacu está aqui. Os demais, a maioria faz parte de desenhos que eu gostaria de fazer. Gosto muito de experimentar, sair dos lugares comuns. Não queria fazer só quadrinhos na minha vida. Queria seguir pintando, ilustrando. Esses aqui são um pouco mais meditativos. Comecei com uma linha e meio que me deixei levar ao que ia se sucedendo. Tem essa coisa de estar no presente, claramente. E, ah, todos foram feitos a lápis, para ter uma unidade.

JC — O que acha do cenário brasileiro de quadrinhos?

POWERPAOLA — Os quadrinhos do Brasil parecem ser um mundo super amplo. Vários mundos dentro de um só. As feiras e festivais em que estive são enormes. Lá na Argentina há muita gente no mercado, mas não é como aqui, há muita diversidade. O que mais me interessa é o que o pessoal jovem está fazendo aqui, que são mais experimentais. Por exemplo, o trabalho de Julia Balthazar e o de Paula Puiupo. Elas duas possuem algo muito genuíno na forma de narrar e desenhar que sai um pouco da realidade. Isso me chama muito mais atenção do que aquele quadrinho clássico, realista.

JC — Para finalizar, de onde vem o Power da Paola? E de onde você arranca seu power, seu poder?

POWERPAOLA — Creio que é primeiro como uma invenção, fingir que tenho poder e que posso com tudo. E isso em algum momento sucede. Sempre fui muito segura, de não saber se o meu trabalho estava indo bem ou para onde eu iria com isso. Já outra parte de mim ao mesmo tempo dizia que estava bem, que eu ia conseguir, que não me importava. Isso me levou a não crer nessa outra parte que não me servia para nada. Creio que todos somos um pouco assim. E Powerpaola não foi um nome que eu pus para mim mesma. Quando estava na França, tinha um namorado francês, e numa festa o flagrei com outra garota. Foi horrível. Estava há uma semana na França, mas estávamos juntos há cerca de um ano e meio, desde a Colômbia. Fui embora da festa e entrei no metrô chorando. Me sentia tonta, muito mal. Aí um africano sentou ao meu lado e me perguntou como eu me chamava. E sempre que eu dizia Paola, ele dizia power. Até que escrevi Paola, ele pegou a caneta, riscou meu nome e escreveu power. Para mim isso foi como um sinal. Passei a pensar 'estou em Paris sozinha, posso fazer o que eu quiser'. E o poder, na realidade, está em tratar de enxergar as coisas a partir de outra perspectiva. No outro dia comprei umas folhas gigantes para desenhar, comprei uns patins. Paris se tornou um lugar muito mais meu, sabe?. Daí, quando criei meu blog (Historietas Reales) e meu Flickr pus o nome Powerpaola. E quando comecei a fazer HQs usei também. Nessa época, os quadrinhos eram muito mal vistos nas artes plásticas, então servia também como um pseudônimo. Assim nasceu Powerpaola.

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