Romance gráfico

Angola Janga: Uma história de Palmares que vai muito além de Zumbi

A HQ de Marcelo D'Salete traz parte dos meandros envolvendo as últimas décadas do Quilombo dos Palmares, que em seu auge chegou a congregar mais de 20 mil pessoas.

JC Online
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Publicado em 02/01/2018 às 13:28
Foto: Divulgação
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Não é possível dissociar a história da escravidão no Brasil da formação dos quilombos. E dentre todos os centros de resistência e convivência de negros fugidos durante o período colonial, o que mais se destacou foi o dos Palmares, na Serra da Barriga, numa área que hoje pertence a Alagoas, mas que na época pertencia à Capitania Geral de Pernambuco. Esse é o cenário de Angola Janga: Uma História de Palmares, aclamada HQ do ilustrador e professor Marcelo D’Salete recém-publicada pela editora Veneta.

A narrativa traz parte dos meandros envolvendo as últimas décadas do maior e mais organizado quilombo da história, que em seu auge chegou a congregar mais de 20 mil rebelados. A grande questão é que o autor mostra aquilo que a gente não vê na escola, nos livros de história que geralmente partem da perspectiva dos luso-brasileiros. No romance gráfico, somos conduzidos pelo olhar dos palmaristas, pessoas com vontades, angústias e medos que escaparam do cativeiro com o objetivo de conquistar autonomia sobre suas próprias vidas.

Resultado de 11 anos de pesquisas e conversas, o livro é uma mistura de ficção e realidade. Isso porque os documentos das últimas décadas da batalha são de fontes compromissadas com a destruição de Palmares, como soldados, oficiais, senhores de engenho, governadores e padres. Até mesmo a biografia de Zumbi, um dos principais líderes do quilombo, é incerta. “Sabemos que ele existiu e foi central em meados de 1670 até o fim da capital Macaco, que foi atacada e destruída em janeiro de 1694”, diz Marcelo.

Essa falta de dados históricos, inclusive, fez com que o autor optasse por uma versão não comprovada para contar a origem de Zumbi. Nela, ele é levado ainda bebê para ser criado por um padre e uma senhora em Porto Calvo, depois que seus pais são assassinados. Antes de se tornar Zumbi, ele era Francisco, um homem livre (não do racismo) que lutou para libertar seu povo até o dia em que foi morto, em 20 de janeiro de 1695, por André Furtado. Atualmente, a data celebra o Dia da Consciência Negra.

Foto: Divulgação
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Quem guia a narrativa é Antônio Soares, a quem conhecemos na história real apenas como o “traidor de Zumbi”. Por isso, Marcelo decidiu contar o ponto de partida desse homem que foi o braço direito daquele que se tornou um símbolo do movimento negro. Soares é retratado como um mulato que é considerado “atrevido” por pedir a carta de alforria que sua senhora deixou para ele quando morreu. Ludibriado pelos herdeiros do engenho, ele foge mata adentro e eventualmente acaba encontrando seu líder. No fim das contas, é o desejo de ser livre que o faz entregar o esconderijo de Zumbi aos bandeirantes. Traição que o mata aos poucos até o seu também precoce fim.

A história de Palmares, entretanto, é maior do que seu líder mais famoso. Nas mais de 400 páginas divididas em 11 capítulos não-lineares, somos brindados com diversos personagens masculinos e femininos. Dentre eles, destaque para alguns nomes reais como Ganga-Zumba, outro líder importante cujas ideias rivalizavam com as de Zumbi; Acotirene, a matriarca e conselheira dos líderes quilombolas cujo nome batizou um dos mocambos da Serra da Barriga; e Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que se tornou célebre por ter comandado a destruição de Palmares.

Uma saída que o autor encontrou para contar a história de forma dinâmica e compreensível foi condensar ações de mais de uma figura histórica num só personagem. André Furtado, por exemplo, representa em alguns quadros os atos de Fernão Carrilho, personalidade relevante nos conflitos da década de 1670. “Os últimos 40 anos de Palmares contaram com diversos governadores da Capitania de Pernambuco. Optei por apresentá-lo apenas na figura de uma pessoa, simplesmente o Governador”, explica o autor, no posfácio.

Estética contemplativa

Apostando numa estética contemplativa, D'Salete equilibra silêncio e ação com maestria, dando o ritmo necessário para que a trama permaneça tensa do começo ao fim. Apesar do pouco uso de palavras e onomatopeias, às vezes até parece que dá para ouvir os gritos de agonia dos personagens. Assim como o barulho dos seus pés quando estes tocam as folhas na fuga frenética pelas matas. O segredo está na qualidade das expressões, feitas a traço fino e definido pela caneta nanquim do quadrinista, que exibe uma grande variedade de ângulos como quem domina as técnicas do cinema. O desenho em preto e branco, bem contrastado como num jogo de luz e sombras, dá o volume necessário à essa obra de peso.

Brasil de hoje

O autor também consegue evidenciar como o Brasil do século XVII diz muito sobre o hoje. É por isso que no último capítulo, Dara, a filha de Zumbi, aparece devaneando em um cenário contemporâneo, em meio ao caos urbano. “Não conseguimos ter de fato uma democracia nem uma situação de equidade entre as pessoas. Isso é um rastro desse Brasil Colonial que permanece. E certos grupos que estão no poder não tem interesse em mudar esse status”, reflete D’Salete. Também por isso a história não termina com a destruição do Quilombo dos Palmares, mas com indícios de uma nova rebelião. “Os conflitos na Serra da Barriga continuaram por 30 anos depois da morte de Zumbi. Mas a ideia desse desfecho é lembrar que os remanescentes dos muitos quilombos espalhados pelo Brasil lutam pela posse das suas terras até hoje”.

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