Foi em um dia 29 de setembro como este, há 110 anos, que o escritor e jornalista Euclides da Cunha, já célebre pelo livro Os Sertões, presenciou – e relatou, posteriormente, em um artigo no jornal – os momentos finais de Machado de Assis. A notícia da doença do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas já havia circulado na imprensa. Amigos e admiradores como Coelho Neto, Graça Aranha, José Veríssimo, Raimundo Correia e Mário de Alencar (filho de José de Alencar e tido como um filho por Machado), conta Euclides, foram prestar a homenagem ao Bruxo do Cosme Velho. “Timbrava em sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo da sua dor”, narra o texto.
Já então, apesar da sua ironia demolidora (ou justamente por conta de sua elegância em ser mordaz, sem fechar portas), Machado era o grande autor nacional, posto que não deixaria nos mais de 100 anos que se seguiram após a sua perda. A possibilidade da sua morte gerou comoção entre os seus pares e a intelectualidade brasileira, mas parecia, para Euclides, reverberar pouco fora desses círculos. “De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas – que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional”, lamentava.
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Essa data que marca a perde de Machado é também um convite a pensar em como um autor que abordou tanto a matéria da vida, nos seus sentimentos e personagens mais contraditórios, incapazes de serem contidos em estereótipos estanques, falou da mortalidade. O caso mais óbvio a ser citado, claro, é o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro que marca o início da fase realista da produção de Machado – daí sairiam outras obras como Dom Casmurro, Quincas Borba e Memorial de Aires. Nessas memórias, não temos um narrador comum: temos um “defunto autor” que decide contar a sua história já falecido. “Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar”, escreve Brás Cubas.
Uma das grandes cenas do livro é a do delírio do personagem antes de morrer. Ao perder a razão, Brás Cubas imagina-se cavalgando um hipopótamo, que afirma o levar para a “origem dos séculos”. Lá, ele encontra a deusa Pandora, a quem pede mais tempo. Ela responde: “Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?”. Brás diz: “Viver somente, não te peço mais nada”.
LEGADO DA NOSSA MISÉRIA
Em Machado, ainda que a vida seja o “legado de nossa miséria”, a morte é muitas vezes o impedimento para o turbilhão da existência, em seus caminhos ora trágicos, ora patéticos. “Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer”, diz Quincas Borba em Memórias Póstumas. Para o crítico e professor da UFPE Anco Márcio Tenório Vieira, o livro é o ponto alto da obra de Machado, “momento em que ele encontra a forma que vai orientar a sua obra a partir de então”, e traz a morte em todo o seu percurso.
“Inicialmente, estar morto oferece uma condição privilegiada a esse personagem: o de poder fazer um balanço completo da sua vida: do primeiro ao último dia da sua existência. Em um segundo momento, descobrimos que essa narrativa dos tempos idos e vividos foi escrita ‘com a pena da galhofa e a tinta da melancolia’. É nesse entremear entra a ‘galhofa’ e a ‘melancolia’ que Machado vai tratar não só a vida do seu personagem Brás, mas também a morte de Rubião, personagem de um outro romance: Quicas Borba”, aponta Anco.
Na cena, uma das mais simbólicas na obra de Machado para o crítico, Rubião, insano, acredita ser Napoleão III e chega a colocar uma coroa imaginária na cabeça, em uma quase cômica. Depois, pede para que guardem sua coroa e muda o semblante, ficando sério, “porque a morte é séria”. “A morte, em Machado, é sempre perpassada por essa abordagem ‘galhofeira’ — de quem ri todo o tempo da miséria humana —, mas também ‘melancólica’: de quem sabe que não é apenas a miséria humana que iguala todos os homens, mas também a morte, a herança que herdamos ao perdermos o Paraíso”, afirma o crítico.
Sobre Memória Póstumas, Anco destaca que a mortalidade assume outros sentidos no romance. “A morte está presente em Memórias Póstumas do princípio ao fim, pois nós, leitores, temos consciência que o narrador é um defunto. No entanto, não é a morte da matéria, do corpo, o objeto de Memórias Póstumas, apesar das várias mortes simbólicas e reais que atravessam a vida do personagem-narrador, mas uma morte que reside em certa incapacidade dele, Brás Cubas, de realizar os seus sonhos, de perfazer algum projeto que imaginou ou sonhou para si. Nesse ponto, ele é uma espécie de alegoria da elite brasileira: sonha e apregoa o discurso da mudança, pois tem consciência que os signos que definem o mundo moderno são aqueles que encerram ações transformadoras que solapam as velhas estruturas, mas sente pânico só em pensar que o mundo que o cerca pode mudar ou perecer”, analisa o crítico.
“E mudar, aqui, é admitir que todas as certezas e verdades que calçam o seu mundo são provisórias, que a roda que gira o mundo moderno é responsável tanto por sepultar os valores de um determinado tempo quanto em forjar novas e provisórias certezas e verdades. Assim, não é da morte, enquanto perfazimento de uma existência, que trata o romance de Machado, mas de um mundo de valores sociais, políticos e econômicos que permitem aos membros da elite a ‘boa fortuna de não comprar o pão com o suor do (seu) rosto’. Para tal, é preciso cultivar uma série de ‘negativas’. São essas ‘negativas’ que permitem a imobilidade da vida e o retardamento da morte”, continua Anco.
No já citado texto de Euclides, apesar do lamento pela falta de “comoção nacional”, o escritor descreve uma cena (talvez retocada pela vontade da homenagear o amigo) que parece saída de um conto. Enquanto amigos e colegas estão reunidos na casa de Machado, aparece um desconhecido, “um adolescente, de 16 a 18 anos no máximo”. “Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam”, conta Euclides.
O jovem soube pelos jornais do estado de saúde e ficou com vontade de visitar Machado, para cumprimentá-lo ou, ao menos, obter notícias. O garoto foi conduzido ao quarto do Bruxo de Cosme Velho: “Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu”. Talvez essa reverência anônima, reveladora de uma gratidão íntima e inesgotável, seja o gesto que unifica até hoje os leitores de Machado.