O estruturalista francês Claude Levy-Strauss, nos anos 30, achou a Baía da Guanabara assemelhada a uma boca banguela. O franco-argelino existencialista Albert Camus a considerou bonita, porém não mais que uma paisagem, com que as pessoas se acostumam: “A riqueza e suntuosidade das cores que brincam sobre a baía, as montanhas e o céu, fazem calar a todos, uma vez mais. Um instante depois, as cores parecem as mesmas, um cartão-postal agora. A natureza de horror dos milagres longos demais”. A observação está no livro Camus, O Viajante – Antologia dos Textos de Albert Camus Sobre o Brasil (Record), tradução de Clóvis Marques, Sergio Milliet e Valerie Rumjanek. Organizado por Manuel da Costa Pinto, são crônicas em forma de diário do escritor argelino, no aniversário de 70 anos de sua passagem pelo Brasil, onde (conheceu Rio, São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recife e Olinda.
Henry Koster, François Tollenare e Maria Graham foram alguns dos estrangeiros que escreveram sobre o país. Citamos esses três porque seus livros são complementos à história de Pernambuco, particularmente do Recife e arredores (Gilberto Freyre valeu-se de seus comentários e narrativas). Porém eles viam a terra e seu habitantes de forma convencional. Limitavam-se a descrevê-los. Camus, no entanto, não se apega a clichês, nem comenta exotismos, sob a ótica de quem nasceu num país rico, “civilizado”. Tira conclusões a partir de detalhes. “É o país da indiferença e da exaltação. Não adianta o arranha-céu, ele ainda não conseguiu vencer o espírito da floresta, a imensidão, a melancolia. São os sambas, os verdadeiros, que exprimem melhor o que quero dizer.
A paisagem, a exuberância das florestas, as metrópoles, São Paulo e Rio, com alto edifícios, nada o entusiasma no país: “O Brasil, com sua fina armadura moderna colada sobre esse imenso continente fervilhante de forças naturais e primitivas, me faz pensar num edifício corroído cada vez mais, de baixo para cima por traças invisíveis. Um dia, o edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo, espalhar-se-á pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a dança da vitória”. Os passeios pelo Rio, a tentativa contínua de intelectuais e autoridades em agradá-lo, o deixa, revela, mais melancólico que feliz.
Onde querem que veja a paisagem, as delícias da cidade maravilhosa, mais tédio sente Camus: “O Pão de Açúcar, com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lamentável Cristo luminoso”. Ele faz anotações sobre o que seus cicerones, de tão acostumados, nem prestam atenção: “Os motoristas brasileiros ou são alegres e loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar. Albert Camus partiu de Marselha, no navio Campana, em 30 de junho de 1949. Só voltaria à França dois meses depois.
Além do Brasil, conheceu Uruguai, Argentina e Chile. As crônicas agrupadas neste livro são parte de um livro de viagem mais amplo, e menos interessante para o leitor brasileiro. Nesta edição, foi incluído o ensaio O Brasil Mediterrâneo de Camus, de Manuel da Costa Pinto, o conto A Pedra que Cresce, publicado no livro O Exílio e o Reino. Um conto que acontece na cidade de Iguape (SP), para onde foi levado por Oswald de Andrade, o único de sua ficção que não se desenvolve na Argélia ou na Europa. Um texto recheado de episódios pinçados do diário de viagem. Camus veio à America do Sul convidado pelo Departamento de Relações Culturais do Ministério de Relações Exteriores da França para uma série de conferências, a maioria no Brasil. A conferência, intitulada O Tempo dos Assassinos está reproduzida no livro.
Só em 1957, Camus ganharia o Nobel de Literatura, mas em 1949, já era um dos maiores escritores da França, portanto do mundo. Sua vinda ao Brasil foi aguardada com entusiasmo. O sociólogo Gilberto Freyre recomendou que o tratassem da melhor maneira possível, e, se possível, o levassem a conhecer a cultura popular pernambucana. A tentativa contínua de intelectuais e autoridades em agradá-lo, o deixava mais melancólico que feliz. Tira conclusões a partir de detalhes. “É o país da indiferença e da exaltação. Não adianta o arranha-céu, ele ainda não conseguiu vencer o espírito da floresta, a imensidão, a melancolia. São os sambas, os verdadeiros, que exprimem melhor o que quero dizer”, escreveu.
NO RECIFE
Em seu diário, Albert Camus comenta ironicamente que era esperado febrilmente no Brasil, onde era tão famoso quanto Proust. Se assim foi na então capital do país, onde era comum a visita de celebridades de grande porte, que dirá na provinciana capital de Pernambuco. Vindo do Rio, o autor de A Peste desembarcou no Campo de Aviação do Ibura no dia 21 de junho, Hospedou-se no Grande Hotel, no Cais de Santa Rita. À tarde, a pé, com um grupo composto de franceses e pernambucanos, entrou no Convento de São Francisco, Capela Dourada, Igreja de Santo Antônio, Rosário dos Pretos, e o Pátio de São Pedro. Na Rua da Palma parou para um cafezinho e um cigarro brasileiros.
O advogado e empresário Baby Salgado (José Paulino Lopes Salgado) atendeu as recomendações de Gilberto Freyre, num telegrama enviado a um amigo em comum: “Preparem um bom maracatu para Camus, um bumba-meu-boi, com Ascenso (Ferreira), com Lula (Cardoso Ayres), Edson Nery da Fonseca. Camus gosta disto, ele não é muito acadêmico. A função foi armada às 19h30, em Apipucos. Depressivo, Albert Camus aventa a possibilidade do suicídio, em alguns trechos do diário, ainda por cima, quando visitou o Recife e Olinda estava gripando. Mesmo assim, ao contrário de outras cidades brasileira que visitou, para as pernambucanas só fez elogiar.
“A Capela Dourada, em especial, é admirável. Os azulejos aqui estão perfeitamente conservados... Admiro a cidade antiga, as casinhas vermelhas, azuis e ocre, as ruas calçadas com grandes pedras pontiagudas”. Adorou o Pátio de São Pedro, embora com ressalvas pela fuligem que a fábrica de Café São Paulo, na época, próxima à igreja, lançava no ar. “Positivamente, gosto de Recife. Florença dos Trópicos ...”. Chateia-se por ter que atender a três intelectuais, gripado e com febre, e foi conhecer Olinda, sobre a qual escreve poucas linhas. Ficou encantado com o bumba-meu-boi, que grafa como “Bomba-menboi”. Para ele um “espetáculo extraordinário”.
Do Recife vai a Salvador. Diz preferir a Baía de Todos os Santos à Baia da Guanabara: “Muito espetacular para o meu gosto”. Entedia-se, porém, com as igrejas da capital baiana: “São as mesmas de Recife, sem bem que tenham mais fama. Igreja do Bom Jesus, com os ex-votos...É sufocante. Mas este barroco harmonioso repete-se muito. Finalmente, é a única coisa a ser vista neste país, e isso se vê depressa...”. É levado a um terreiro de candomblé, que comenta em detalhes.
No Rio, num jantar em que está presente o poeta pernambucano Manuel Bandeira, elogia: “Homem pequeno e extremamente fino”. “Depois do jantar, Kaïmi (Caymmi), um negro que compõe e escreve todos os sambas que o país canta, vem cantar com seu violão. São as canções mais tristes e mais comoventes. O mar, o amor, a saudade da Bahia. Pouco a pouco, todos cantam, e veem-se um negro, um deputado, um professor de faculdade e um tabelião cantarem esses sambas, em coro, uma graça muito natural. Totalmente seduzido”.
Abdias Nascimento, o teatrólogo, ativista da causa negra o leva a um dancing, onde Camus chega a dançar com uma mulata: “Bato nos flancos para despertar em mim apetites e me dou conta, de repente, de que estou me entediado. Táxi. E volto para casa”