História

Laurentino Gomes e a história cruel da escravidão

Mais volumes serão publicados até 2022

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 22/09/2019 às 10:28
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“A história da devastação do continente africano e da transformação do Oceano Atlântico num imenso cemitério começou muitos séculos antes, no ancoradouro de um vilarejo de casinhas brancas debruçadas sobre o mar na região sul de Portugal”, do parágrafo final, do capitulo inicial do livro Escravidão Volume 1 - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, novo livro do jornalista e historiador Laurentino Gomes (Globo Livros), uma epopéia devastadora. O autor  adividiu em três volumes. O segundo virá em 2020, e o terceiro em 2021.

 Laurentino conta que levou seis anos de viagens e pesquisas, em doze países de três continentes (África, América e Europa). Repetiu, ressalta, a experiência vivida por Gilberto Freyre, no final da década de 20, portanto recolhendo material para o que seria Casa Grande & Senzala: “Como ele, tive o privilégio de conhecer bibliotecas, museus, centro de estudos, antigas fazendas produtoras de algodão, cana-de-açúcar, as famosas plantations, hoje transformadas em memoriais dedicados à história do cativeiro africano na América”.

Se os caminhos percorridos coincidem com os de Gilberto Freyre, não se pode dizer o mesmo do que ambos produziram com o material que trouxeram de volta para casa. Freyre erigiu com o dele uma tese sociológica até hoje com críticos e apologistas. Laurentino deixou conjecturas de lado. Optou por expor uma tragédia de dimensões gargantuescas.

“Ao longo de 350 anos, entre 23 milhões e 24 milhões de seres humanos teriam sido arrancados de suas famílias e comunidades em todo o continente africano e lançados na engrenagem do tráfico negreiro. Quase a metade, entre 11 milhões e 12 milhões de pessoas, teria morrido antes mesmo de sair da África”, escreve Laurentino. Os números são cruéis. 12,5 de cativos foram despachados nos porões dos navios, mas só 10,7 milhões chegaram aos portos do continente africano.

 “O total de mortos na travessia do oceano seria de 1,8 milhões de pessoas ... dado o alto índice de mortalidade após o desembarque, apenas 9 milhões de africanos teriam sobrevivido ao tormento dos três primeiros anos de escravidão no novo ambiente de trabalho”. O autor ilustra os números com exemplos. Em 1805 um brigue sob o comando do capitão Félix da Costa Ribeiro partiu da região de Biafra com 340 escravos, dos quais 230 morreram nos quarenta dias de travessia até Salvador. Portanto, esse navio sozinho, terá lançado ao mar entre cinco a seis cadáveres por dia, média semelhante à do Protector, que teve 151 mortos na viagem de 50 dias entre Luanda e o Rio de Janeiro.

Morria-se de doenças físicas e da alma. Disenterias, febre amarela, escorbuto, varíola. Também por suicídio. Os navios negreiros eram equipados com redes estendidas ao redor do deque superior, a fim de evitar que, desesperados, os cativos se jogassem ao mar. Morria-se por fim, de banzo, nome que os africanos davam à depressão. Tantos cadáveres ao mar que levaram os grandes animais marinhos a mudar suas rotas migratórias. Passaram a seguir as embarcações pelo oceano, esperando os corpos que inevitavelmente seriam lançados às águas:

 “Os tubarões começavam a seguir os navios negreiros assim que as embarcações alcançavam a costa da Guiné.

INÍCIO

 Em oito de agosto de 1444, em Lagos, o “vilarejo de casinhas brancas”, que fica no Algarve, ao Sul de Portugal, dos porões de meia dúzia de caravelas ancoradas no cais saíram 235 africanos, que seriam arrematados em leilão. Alguns foram doados, um menino foi a um convento, e se tornaria monge. O primeiro lote, com 46 escravos foi para o infante Dom Henrique, quinto filho do rei Dom João I, já falecido, e irmão do regente do trono, Dom Pedro. Sabe-se dos detalhes desse episódio fatídico por uma testemunha que o preservou para a posteridade, Gomes Eanes de Azurara, “filho de padre, cavaleiro da Ordem de Cristo, guarda-mor da Torre do Tombo e biógrafo do infante Dom Henrique. Seu manuscrito seria publicado em livro. “O comércio de escravos ajudaria a financiar as chamadas dos descobrimentos, entre os quais o do Brasil, “a maior e mais lucrativa colônia do Império Português, e também a mais dependente de mão de obra escrava”.

 Claro, a escravidão de seres humanos não começou em Portugal. É quase tão antiga quanto a humanidade. Praticaram-na todos os povos. Foram cativos pessoas de pele negra ou branca. “No auge da civilização grega, 70 mil dos 155 mil habitantes de Atenas seriam cativos, número ainda modesto se comparado ao da capital do Império Romano. Presume-se que haveria meio milhão de escravos em Roma, por volta da época de Jesus, aponta Gomes. Esclave (francês), schiavo (Itália), sklave (alemão ), ou slave (inglês), derivam-se do latim slavus, que designava os habitantes da região dos Balcãs, Leste da da Europa, Sul da Rússia”, afirma o autor.

 Esses povos foram fornecedores de mão de obra cativa, para o Oriente Médio e o Mediterrâneo, até o início dos século XVIII. “Ou seja, nesse caso, os escravos geralmente pessoas brancas, de cabelos loiros e olhos azuis”. Laurentino Gomes destaca que o que diferencia a escravidão na América das demais formas de cativeiro anteriores é o surgimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo”.

 ZUMBI

Impressiona a quantidade de informação que o autor esparge pelas 441 páginas de uma narrativa coloquial, o que não surpreende aos que já leram a trilogia que publicou sobre a história do Brasil, 1808, 1822 e 1889. No capítulo final, dedicado a Zumbi dos Palmares, Laurentino Gomes lança um olhar cético sobre o mito construído ao longos dos séculos, há mais suposições do que fatos. Um Zumbi que “está nos sonhos, na imaginação e na convicção de cada pessoa, e cada geração de brasileiros que sobre ele se debruçaram, na vã tentativa de desvendar-lhe o mistério”.

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