“As pessoas tendem a achar que o problema da moradia é a favela e que a favela gera exclusão e violência. Aí raciocinam: vou tirar essas pessoas daqui, desmanchar esse lugar e com isso acabar o problema. Contudo, o que se percebeu na experiência chilena é que a questão é muito mais complexa. Esse modelo que está aí, que veio do Chile, continua reproduzindo a exclusão. Agora, claro que teve importância muito grande no Brasil o governo reconhecer a necessidade de investimentos do orçamento público em moradia. Foi um enorme avanço, fruto de anos de debates. É importante dizer que ter uma casa, mesmo que seja um apartamento com infraestrutura minimamente construída, é melhor do que a situação anterior. Mas moradia não é só a casa; é também o conjunto de elementos no entorno. É preciso reconhecer os avanços dessa política e, ao mesmo tempo, evidenciar seus limites, que têm a ver com a montagem e a lógica do programa”.
Esta síntese do programa habitacional do governo brasileiro está numa entrevista da urbanista paulistana Raquel Rolnik à jornalista Luciana Veras, para a revista Continente edição de julho de 2016. A análise de Raquel Rolnik faz parte da coletânea 30 Entrevistas da Revista Continente (Cepe Editora), organizada pela também jornalista Adriana Dória Matos, que será lançada nesta quarta-feira, a partir das 19h30, no Ursa Bar e Comedoria, no Espinheiro (Rua Carneiro Vilela, 30).
O lançamento antecipa a festa de aniversário da própria Continente, um fenômeno editorial em longevidade. A revista, extremamente abrangente na abordagem cultural, social, política, local, nacional e internacional, em janeiro de 2020 completa duas décadas em circulação, como uma das importante do gênero no país.
Adriana Dória Matos esclarece que a escolha deste tipo de entrevista, no estilo pingue-pongue (isto é, perguntas e respostas) foi “a maneira mais indicada para revisitar a publicação nos últimos dez anos e fazer as pessoas pensarem o contemporâneo. A ênfase na segunda década da revista se dá pelo fato de ter sido em 2009 que a Continente passou por mudanças editoriais e gráfica. “São nomes de relevância que têm em comum a postura crítica diante de fatos de repercussão nacional e internacional, como as desigualdades sociais e de gênero e as migrações, Além de discussões de temas contemporâneos como capitalismo, pós-modernidade, globalização e memória” explica Adriana, sobre o critério para escolha dos entrevistados.
Outro exemplo do conteúdo encontrado na edição comemorativa está na contribuição do do historiador, cientista político, escritor e artista Camille de Toledo, de origem turco-judaica-espanhola, respondendo a entrevistadora Olivia Mindelo, sobre a ascensão da direita mundo afora e a possível influência da Europa sobre o fenômeno: “É preciso, então, estar atento à dialética entre esses dois modos de gestão. De um lado, o estado-nação, um quadro ligado a noções de identidade, território, fronteira, soberania; e do outro, o capitalismo, um modo de organização dos fluxos econômicos que vão além dos territórios, dos corpos sociais, que colocam em concorrência as sociedades em uma escala mundial. E é essa dupla que tende a produzir os monstros da reação. Quanto mais o capitalismo se globaliza, quanto mais ele uniformiza as condições de vida, quanto mais ele coloca em concorrência as sociedades, os países, quanto mais ele enfraquece os Estados, mais a tentação para “reconstruir as fronteiras”, para ‘defender as identidades’, cresce”.
LINHA
A seleção das entrevista reflete a linha editorial da Continente nesta década, priorizando temas mais específicos, geralmente mais presentes em publicações acadêmicas. Entre as 30 entrevistas, há cinco com músicos: a carioca Beth Carvalho, os pernambucanos Alceu Valença, Otto e Siba Veloso, e o alagoano Hermeto Pascoal. Nessas entrevistas, o debate é menor, tratando mais sobre a obra de cada um. No caso de Siba Veloso, por exemplo, a jornalista Paula Passos o entrevistou em maio de 2019, quando o artista terminava de trabalhar o álbum De Baile Solto e finalizava Coruja Muda (lançado quatro meses depois). A conversa fixa-se no trabalho solo de Siba, com um inevitável viés para sua relação com o maracatu rural (principalmente este), com o qual o cantor convive há duas décadas, testemunhando as mudanças que aconteceram neste período.
O cinema, a arte mais prestigiada no século 21, está presente nesta coletânea em sete entrevistas (oito, se contarmos que em uma delas a conversa é com dois cineastas, o pernambucano Marcelo Gomes e o mineiro Caos Guimarães, e considerando que João Silvério Trevisan, mais conhecido como escritor, também é cineasta). O “alternativo” diretor americano Jim Jarmusch também comparece na conversa travada por Rodrigo Salem, em outubro de 2014