Por anos a fio, João Cabral de Melo Neto se deparou todos os dias com o deslumbre da força da natureza nos canaviais pernambucanos. O movimento hipnótico do vento nas plantações de cana-de-açúcar e os diferentes tons de verde que coloriram sua infância foram determinantes em sua poesia. Mais tarde, quando já morava no Recife, foi o vai e vem das águas do Capibaribe que passou a encantá-lo e, em suas andanças pelo Estado, a dureza da caatinga e a determinação do povo sertanejo se transformaram em protagonistas de muitos poemas. É impossível analisar a poética cabralina sem levar em consideração a importância dos elementos da natureza em sua obra.
Este encantamento abstrato sentido por João e transmitido de maneira tão clara para seus leitores também fascinou o escritor e crítico literário carioca Antônio Carlos Secchin desde o fim dos anos 1970, quando dedicou sua pesquisa de mestrado em letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ao poeta pernambucano. Desde então, ele nunca mais parou de ler, reler e analisar os livros de João Cabral, publicando diversos artigos e livros a seu respeito.
“Quando li pela primeira uma antologia poética dele, em 1977, pensei que ele estava escrevendo para mim. A sua lucidez, seu sistema de construção, as imagens que ele retratava, tudo dialogava comigo”, conta. “A natureza na obra dele é predominantemente mineral. Além do rio, temos o elemento da pedra, os opostos da liquidez e do que há de mais sólido.”
Plasticidade do real
Muito se fala do caráter visual da poesia de João Cabral de Melo Neto. Esse aspecto estético não vem de forma ilustrativa mas está presente em seu conteúdo, há uma plasticidade na maneira como ele retrata a natureza. “Quando ele escreve sobre o canavial encontramos a temática das usinas, dos engenhos e, muitas vezes, ele fala da cana como pura forma: a sua elegância, o corte, a linha. Ele gostava de ver a natureza em suas formas, no espetáculo da beleza, independentemente de sua utilidade”, pontua Secchin.
Outra pesquisadora que rapidamente cedeu aos encantos da obra de João Cabral foi a paraibana Raíra Maia, professora no curso de letras na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ávida leitora de poesia. “É curioso lembrar que ele passou a escrever sobre as paisagens de seu Pernambuco depois que passa a morar fora do Brasil. Apesar de ser filha de sertanejos, fiquei muitos anos sem ir ao Sertão e tive a sorte de conhecer o que significa esse lugar por vias cabralinas”, avalia, ao destacar alguns versos do poema O Sertanejo Falando, publicado em A Educação Pela Pedra, em 1966, quando ele morava na Suíça.
“A fala a nível do sertanejo engana: as palavras dele vêm, como rebuçadas/ (palavras confeito, pílula), na glace/ de uma entonação lisa, de adocicada./ Enquanto que sob ela, dura e endurece/ o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,/dessa árvore pedrenta (o sertanejo)/ incapaz de não se expressar em pedra (...)”
O rio
Uma simples busca pelas palavras “rio” ou “água” na obra de João Cabral faz qualquer leitor perder as contas do número de vezes em que esse elemento é citado. O Capibaribe é uma constante em seus poemas, seu nome flui através de seus livros em diferentes décadas assim como ele próprio desliza desde sua nascente em Brejo da Madre de Deus até desaguar no Oceano Atlântico, no Recife. É possível, entretanto, elencar três poemas principais em que o rio é protagonista: O Cão Sem Plumas (1950), O Rio (1954) e Morte e Vida Severina (1955). “É curioso que o rio tenha sido negado nos primeiros livros, mas conseguimos entender o porquê. Nos anos 30, ele se liga a um grupo de artistas que negava essa tradição regional, achavam que o poeta devia ser universalista”, pontua seu biógrafo Ivan Marques.
Tudo muda quando o diplomata estava morando em Barcelona e leu um artigo sobre a expectativa de vida do homem pernambucano ser de 29 anos. João Cabral ficou espantado com esse dado e sentiu então a necessidade de conduzir sua escrita para uma vertente mais social. Daí nasce O Cão Sem Plumas, um poema que aborda as condições sociais do Recife através de uma narrativa fluida mas muito dura. Depois, em O Rio, é o próprio Capibaribe que conta um pouco de sua história, que parece bastante com a do próprio poeta. “Para o mar vou descendo/ por essa estrada da ribeira./ A terra vou deixando/ de minha infância primeira”, diz.
Do canavial para o rio, do rio às pedras. Entre tantas andanças pelo mundo, os elementos da geografia pernambucana sempre permaneceram vivos na memória de João Cabral e foram eternizados em seus poemas. Retratos de um Nordeste da primeira metade do século 20, mas cuja contemporaneidade surpreende ainda nos dias de hoje.