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Obra e poemas de João Cabral de Melo Neto têm fortes denúncias sociais

Em Morte e Vida Severina, autor tece duras críticas sociais que podem ser analisadas nos dias de hoje

Valentine Herold
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Valentine Herold
Publicado em 05/01/2020 às 7:00
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Em Morte e Vida Severina, autor tece duras críticas sociais que podem ser analisadas nos dias de hoje - FOTO: Foto: Reprodução
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Em 1974 o Brasil ainda passava por um de seus períodos mais duros politicamente falando. João Cabral de Melo Neto morava no Senegal, em função de sua carreira diplomática e, em uma de suas passagens pelo Brasil, cedeu uma entrevista para o programa Primeiro Plano, da TV Cultura. “Eu gostaria de fazer uma poesia que não fosse um carro deslizando num pavimento de asfalto, aquela coisa lisa. Mas uma poesia em que o leitor, esse leitor sendo o carro, passasse em cima de uma rua muito mal calçada e que o carro fosse sacolejado a todo momento”, afirmou na ocasião. Cerca de 25 anos antes, ele havia lançado O Cão sem Plumas, a primeira de suas muitas obras em que as críticas sociais falava mais alto que qualquer outra temática. Desde o início dos anos 1950 a obra cabralina é permeada por esses assuntos difíceis mas necessários.

O seu poema mais famoso, Morte e Vida Severina, é outro exemplo da habilidade do pernambucano em transpor elementos da realidade social dando voz aos indivíduos invisibilizados sob forma de poesia. “(...) Somos muitos Severinos/ iguais em tudo e na sina:/ a de abrandar estas pedras/ suando-se muito em cima,/ a de tentar despertar/ terra sempre mais extinta,/ a de querer arrancar/ algum roçado da cinza”, escreveu neste Auto de Natal Pernambucano.

Clássicos na atualidade

Um dos grandes diferenciais das obras clássicas é justamente o fato delas permanecerem contemporâneas mesmo décadas depois de lançadas. Claro que é preciso levar em conta o contexto histórico e social de seus tempos ao reinterpretá-las. O Sertão de hoje está bem distante daquele dos anos 50, incontáveis avanços foram realizados e a falta de água e comida já não assola tanto os sertanejos quanto naqueles tempos. Mas seus Severinos ainda estão aí, agora nas periferias das grandes cidades. “E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte Severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte/ de fome um pouco por dia.”

Para o escritor Mário Hélio, esta obra representa uma troca de vozes e exige uma leitura dramática. “Assim como O Cão Sem Plumas, temos em Morte e Vida Severina o elemento muito forte de comparação, do homem severino que se espelha no rio”, avalia. “O Severino de hoje é esse que é tantos de nós, aquele que está à margem dos núcleos de poder”, acrescenta a pesquisadora em literatura brasileira Raíra Maia. “A ideia de tensão em João Cabral de Melo Neto não opera apenas no discurso, ela se faz também enquanto poema. A poesia não age como mero suporte de um discurso político. Não é apenas o que é dito mas também a forma como ele diz”, complementa.

Naquela mesma entrevista de 1974, João Cabral também refletiu sobre o papel social do literato. “Tanto o poeta quanto o prosador é responsável diante do resto da humanidade pelo que diz. Portanto, tenho a impressão que, para o sujeito que nasceu com a aptidão de usar as palavras, a primeira obrigação dele é dizer a verdade.”

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