Em 1995, o nome do estilista Eduardo Ferreira, então com 28 anos, disparava na bolsa de apostas como a próxima explosão no mercado da moda brasileira. Enquanto seus contemporâneos – Jum Nakao e Ronaldo Fraga, para citar apenas dois – seguiam para o olho do furacão, Eduardo contrariava as expectativas gerais e se “interiorizava”. Nos dois sentidos, por dentro e por fora.
Por dentro, ele iniciou um processo de luto ao lidar com perdas significativas – sua mãe e o próprio Chico Science, além das convicções que até então vinha cultivando de que aquele era o caminho para ele. Por fora, resolveu se deslocar geograficamente, do litoral em direção ao Agreste, para realizar um trabalho de imersão antropológica junto às rendeiras de Renascença dos municípios de Jataúba, Passira e Poção.
Percorreu o circuito das feiras, sentou-se com elas, comeu onde comiam, conheceu suas vidas e o meio encontrado para sustentá-las. Virou consultor contratado pelo Sebrae com a tarefa de compartilhar saberes. Foram dez anos de mergulho nesse universo, de onde saiu mais maduro e, principalmente, mais em paz com o tipo de moda que foi talhado para fazer.
Antes disso, porém, Eduardo Ferreira deixou como legado dessa época incendiária – que rebatizou o Recife como Manguetown – a marca e coleção Mangue Fashion, em dois desfiles icônicos: no Recife, no Arcádia Apipucos, e no Phytoervas, em São Paulo, sob a égide de Paulo Borges.
Para celebrar essas duas décadas de resistência na moda – que ele acha talvez melhor chamar de “implicância” – Eduardo Ferreira realiza na próxima sexta-feira, dia 26, o evento 120 km, que tem perfume dos anos 1990, no sentido de que várias linguagens, tribos, propostas, atitudes e conceitos convergirão para um mesmo local, como águas que fluem para o delta de um rio.
No Roda Café, a partir das 21 horas, a noite começa com a exposição Ciliar, do fotógrafo Akampa Pedrosa. A mostra traz 26 imagens realizadas nas matas ciliares de Aldeia, fundamentais no seu papel de proteger os mananciais hídricos do assoreamento. Podemos tomá-la como uma metáfora da moda em que Eduardo acredita: a que respira e alimenta. Não a que consome e descarta.
Por entre a vegetação, Cannibal Santos, vocalista da banda Devotos e do trabalho paralelo que desenvolve com a Café Preto, posa de modelo usando os trajes que Eduardo Ferreira desenhou especialmente para a sua presença à frente da segunda banda, na qual abandona a estrita postura punk rock hardcore para abraçar o ecletismo.
O palco – através do teatro, da dança e da música – tem sido, aliás, a grande válvula de escape para que Eduardo canalize sua criatividade como estilista. Avesso ao enfoque meramente sedutor e inumano de um segmento que é construído sobre suor e sangue, Ferreira apazigou sua alma de pesquisador e construtor de ideias sobre tecidos e estampas ao se dedicar àquilo em que de fato acredita: liberdade e mensagem.
No segundo momento da noitada, às 23h, Cannibal assume o microfone para uma performance, dirigida por Nestor Mádenes, na qual, ao mesmo tempo em que apresenta a canção 120 km do seu novo EP, ostenta intercaladamente seis figurinos que se desdobram em 10 peças, complementados pela participação de modelos masculinos e femininos que interagem com 15 outros looks.
O que veremos, do ponto de vista da moda, é uma continuação da coleção Alecrim, lançada em 2013, que desembocou na linha chamada M.A.R.C.G.R.A.V.E, com peças em vendas pop up durante o evento. A participação de Cannibal, como muso e modelo, vem de longe. Desde 1990, o músico e o estilista, ambos do signo de escorpião, descobriram-se gêmeos na inquietude, que força uma busca por identidades múltiplas. “Cannibal se apropriou de suas raízes para contar uma história de forma diferente”, considera Eduardo Ferreira.
“Desde o início de sua carreira, ele assumiu uma postura fashion, não apenas no palco, mas no dia a dia. Sua aparência é condizente com o seu interior. Ele empodera o seu entorno, estimulando ações em favor da cidadania, e, ao mesmo tempo, extrai desse hábitat sua força”, define Eduardo Ferreira. Cannibal é antropofágico como a moda de Eduardo. Ele é o que veste e se veste como é. Como se a roupa fosse sua pele = identidade.
A linha M.A.R.C.G.R.A.V.E, criada por Eduardo Ferreira, nasceu – como sempre acontece com ele – de um olhar, ao mesmo tempo distraído e concentrado. Distraído porque a inspiração vem quando ele não procura por ela. E concentrado porque, uma vez encontrado o fio da meada, ele não sossega enquanto não desenrola o novelo por inteiro.
Ao construir um vestido de casamento, o estilista, como que por acaso, deparou-se com a área de interesse profissional do noivo. E ela o conduziu – encurtando bastante a história – para os desenhos feitos pelo matemático e naturalista alemão Georg Marcgraf (ou Marcgrave).
O cientista esteve no Brasil entre 1638 e 1643 e, mesmo tendo morrido jovem, aos 34 anos – apenas um ano depois da viagem –, deixou registrado, como nenhum outro havia feito, um extensivo apanhado da flora, fauna e geografia brasileiras, tendo sido responsável por boa parte do que está contido na publicação Historia naturalis brasilieae, só lançada após sua morte.
Nas mãos de Eduardo Ferreira, o trabalho de Georg Margraf foi traduzido em estampas exclusivas, pontuadas pela explosão de cores e formas que, seguramente, devem ter mesmerizado o olhar do alemão que catalogou mais de 100 espécies de peixes da costa brasileira.
CORES E FORMAS
A M.A.R.C.G.R.A.V.E. tem na malharia e camisaria sua expressão mais forte, aliada a uma modelagem que cruza as fronteiras de gênero. Nos figurinos criados exclusivamente para a performance de Cannibal à frente da Café Preto, Eduardo Ferreira deu vazão ao seu eterno amor pela alfaiataria, talhando ternos, coletes e calças ajustadíssimos à figura slim do vocalista. Aliou ao conjunto as estampas, nas quais predominam exemplares dessa fauna e flora, como mangarás, peixes e crustáceos.
Para vestir Cannibal, Eduardo buscou inspiração, também na estética “sapeurs”, protagonizada pelos homens congoleses, que fazem absoluta questão de se apresentarem como dândis. 120 km é, ao mesmo tempo, a canção de Cannibal e um indicativo de que não há distância que não possa ser superada. Na música, na moda e na vida.
120 km Moda, música e fotografia - Dia 26/02, a partir das 21h, no Roda Café - Rua Madre de Deus, 66, fone: 3019-1776