Há quatro anos o músico Juliano Holanda, integrante, entre outros grupos, da Orquestra Contemporânea de Olinda, foi convidado para participar da coletânea Música de estúdio, do estúdio Muzak. Compositor, arranjador, diretor e produtor musical e multi-instrumentista, Juliano já havia sido gravado por dezenas de outros artistas, menos por ele mesmo. Enquanto registrava sua faixa Um passo, entre um take e outro ele interpretava alguns de seus temas. A cada música o técnico de gravação André Oliveira dizia: “Já ouvi” ou “Essa conheço”. Nascia naquele momento o embrião de A arte de ser invisível (selo Núcleo Contemporâneo), álbum de estreia solo de Juliano cujo título resume bem a carreira e a obra de um autor e intérprete cuja intensidade de seu talento só se iguala a sua capacidade de discrição.
O show de lançamento, gratuito, ocorre no próximo domingo (2/6), a partir das 19h, na Casa do Cachorro Preto, em Olinda, durante a vernissage do artista visual Raoni Assis, que assina a arte da capa e a diagramação do encarte. No palco, o compositor multi-instrumentista é acompanhado pelos músicos Júnior Areia (contrabaixo), Gilú (percussão), Zé Manoel (teclado) e Isadora Melo (voz). O CD estará à venda no local.
A exemplo do que aconteceu com a experiência do técnico André Olivera, para quem acompanha com um pouco mais de atenção a cena musical pernambucana a habilidade musical de Juliano Holanda está longe de ser invisível – muito menos inaudível. Hoje com 35 anos de idade, o músico atingiu precocemente o que poderia se chamar de uma primeira maturidade. No currículo, já soma mais de uma centena de músicas gravadas, participações em mais de 50 álbuns e em milhares de apresentações. Uma trajetória emblemática de um músico que começou a trabalhar cedo e que parece respirar sua própria arte em vez de oxigênio.
Nascido em Goiana, na Zona da Mata Norte pernambucana, e criado no eixo Goiana–Olinda, Juliano começou a vivenciar a música de berço. Sua própria cidade-natal já é conhecida historicamente como uma fértil fonte musical, terra das sesquicentenárias bandas de música Saboeira (que teve seu avô como um dos presidentes) e Curica e de maestros como Duda, Guedes Peixoto e Capitão Zuzinha. Como se isso não bastasse, em casa o pai, Júlio Holanda, compõe e toca violão, instrumento compartilhado com a mãe, Ana Holanda, e um dos tios, o também poeta Zé Torres (ambos já falecidos).
“Quando eu era pequeno eu ia muito a Saboeira e a Curica”, conta Juliano. “Goiana é uma cidade meio colonial. Parece muito com Olinda. Acho que minha coisa vem daí.” Mas não foi só isso.
Um outro elemento goianense que também exerceu bastante influência na formação do menino Juliano foi a divulgadora Tupã, uma espécie de rádio comunitária que existe há décadas no município. “Eu ouvia muito. Tinha tipo um especial. Um dia (por exemplo) era Moreira da Silva”, lembra.
A primeira vez que Juliano deixou Goiana foi para estudar a alfabetização, em Olinda. “Minha vida foi sempre lá e cá”, explica. Aos 7, 8 anos, começou a tocar violão. “Aos nove eu já tocava mais ou menos. Aos onze formei minha primeira banda.”
Mesmo muito jovem, porém, já existia ali a gênese do Juliano Holanda que conhecemos hoje. “Quando comecei a tocar eu queria ser compositor. Nunca me vi como instrumentista. Mas, quando você começa a tocar, começa a se envolver com alguns trabalhos. Mesmo assim eu sempre achava que ia ser publicitário, desde pequeno. Cheguei até a prestar vestibular.”
Quando completou 18 anos de idade, Juliano deu seu primeiro passo decisivo da carreira: ingressou, por conta própria, no Conservatório Pernambucano de Música, no Recife. “Estava me sentindo estagnado, querendo sair daquele circuito em que me encontrava.”
No CPM, passou a integrar a banda Cobra Norato, como baixista, ao lado de Carlos Ferrera, Breno Lira e Tomás Melo, e participou de diversas formações de jazz. “Mas nunca a ambição de ser músico de jazz. Quando comecei tive a sede de querer aprender tudo. Aprendi piano... Depois, vi que tinha que me dedicar a alguma coisa.”
Após dois anos no Conservatório – onde se formou em violão popular tendo como professor Nilton Rangel –, Juliano ingressou no curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal de Pernambuco. “Na UFPE conheci Gustavo Azevedo, que me chamou para o Azabumba (ex-Zabumba de Virgulino). Foi quando gravei o primeiro disco”, recorda.
Aos 20 anos de idade, quando tudo parecia caminhar para uma vida exclusivamente dedicada à música, Juliano Holanda se casou pela primeira vez. Faltando três disciplinas para concluir o curso de música largou a universidade. “Tive que trabalhar”, justifica. “Foi quando comecei a tocar com muita gente. Comecei a ver que tinha uma grande demanda.” Nessa época ele tocava com umas 15 bandas e artistas, como Mombitaba, Valéria Pimentel e outros que não lembra.
No novo milênio, veio o convite para integrar a banda de Maciel Salu. “Com Maciel fui para a Europa, gravei dois discos, fiz o Projeto Pixinguinha e toquei em várias cidades do Brasil. Foi o primeiro trabalho que me deu visibilidade fora daqui. Foi um período em que houve mais propostas para gravar discos, havia uma maior facilidade. Antes era muito caro gravar. Muitas bandas em que toquei não têm registro”, lamenta.
Nos anos 2000, a lista de artistas e grupos que contavam com o talento de Juliano só fazia crescer: Zeh Rocha, Alessandra Leão, Erasto Vasconcelos, Negroove, Izidro, Rabecado (projeto paralelo da Azabumba), Jam da Silva, Dona Cila do Coco, Biu Roque. Passou a ser bastante requisitado.
“Minha opção foi sempre ficar no Recife. Gosto muito de morar aqui. Se eu pudesse moraria em Goiana (risos). Sempre lutei para criar uma cena no Estado”, defende.
Paralelamente ao trabalho como instrumentista, contudo, Juliano sempre se dedicou à composição. “Desde o começo sempre compus. Compor é meu ofício diário, é meu trabalho, meu artesanato.” Com tamanha produção, de toda uma vida, era inevitável que o autor passasse a ser gravado com maior frequência. E foi o que aconteceu.
Sua primeira composição registrada em disco foi Peleja (parceria com Breno Lira), pelo Treminhão, no disco homônimo de estreia do grupo de 2005. Na faixa, Juliano faz uma participação tocando viola de cocho. No armazém foi o primeiro tema de Juliano registrado por um outro artista no qual o autor não participou da gravação. Está em Peso leve (2008), o quinto álbum solo do cantor Geraldo Maia, parceiro da composição.
“Eu tocava mais guitarra, na fase do jazz, no CPM, e passei a tocar contrabaixo. Era uma época em que guitarra e bateria era palavrão. (A predominância) era mais regional. Voltei a tocar guitarra com Erasto Vasconcelos”, relembra.
Além de guitarra, contrabaixo, violão, viola de cocho e piano, Juliano Holanda também toca viola de 10 e 12 cordas, cavaquinho, teclado e escaleta e até se aventura na percussão. Como arranjador, assinou os arranjos de praticamente todos os temas que gravou de outros artistas, sozinho ou coletivamente.
Também faz direção musical e já assinou a produção de trabalhos de Bongar (Chão batido, coco pisado), Joaquim Izidro (O andor e as horas), Zeh Rocha (Tear), Babi Jaques & Os Sicilianos (Cosa nostra), Ticuqueiros (Foto do mundo) e Zé de Teté (O rei do coco chegou), entre outros, uma atividade que demonstra nenhuma preferência por um gênero musical específico.
“Sempre quis ter a cabeça aberta. Talvez seja por causa da Tupã (a divulgadora de Goiana, sua cidade natal)”, brinca. “Na infância e adolescência eu ouvia muito o rádio. Sou de uma época em que a gente se encontrava só para ouvir música.”
Depois que Juliano gravou com Erasto, voltando a empunhar a guitarra, foi convidado por Gilú (ou Gilsinho, como é mais conhecido pelos amigos) para formar a Orquestra Contemporânea de Olinda – que atualmente já se prepara para gravar seu terceiro álbum.
“Foi o primeiro trabalho que me deu visibilidade individual”, conta. “No meio desse processo veio um convite de André Oliveira e de Marcelo Soares, do (estúdio) Muzak, para gravar uma faixa para a coletânea Música de estúdio. Foi a primeira vez que gravei voz”, fala, com franco orgulho. Além de cantar, Juliano tocou os instrumentos, exceto a percussão, que ficou a cargo de Gilú.
“Quando eu estava gravando comecei a tocar músicas minhas que haviam sido gravadas por outras pessoas. André dizia: ‘Conheço essa música’. ‘É minha’, eu respondia. Ele disse: ‘Vamos gravar isso’. Já havia uma cobrança (nesse sentido), mas até então eu não achava viável artisticamente”, pondera. “Cheguei em casa e falei com Mery (Lemos, atual esposa e produtora executiva de A arte de ser invisível). Ela disse: ‘Vamos fazer o projeto’. Aí foi aprovado no SIC (o Sistema de Incentivo à Cultura do Recife). Se não fosse Mery esse disco não tinha saído.”
Gravar um disco solo passava pela cabeça de Juliano Holanda, mas ele conta que nunca chegou a imaginar como seria o projeto. “Sempre me considerei um músico de banda, mas o compositor e o músico nunca se encontravam. É como se eu houvesse criado dois personagens. Com os trabalhos paralelos comecei a ganhar confiança. Aí os dois lados se encontraram”, comemora.
Na hora de selecionar o repertório de A arte de ser invisível procurou o que achava que tinha de melhor e que lhe dava mais segurança. “Foi aí que juntei o produtor, o diretor musical e o instrumentistas com o compositor. E ainda cantei uma música de lambuja”, recorda.
O segundo passo foi pensar quais intérpretes principais, entre aqueles artistas que conhecia e admirava, participariam da obra. “Muita gente ficou de fora, porque não dava para colocar todo mundo”, lastima. “Mandei para cada um três músicas demo (de demonstração) que gravei em casa. Só para Siba e Geraldo Maia eu mandei uma que sabia que eles iam gostar. (Os outros) cada um escolheu uma.”
Com o repertório definido, Juliano começou a harmonizá-lo para dar um conceito de álbum. “É um disco que eu pensei na canção, no que ela precisava”, explica.
O nome do CD, A arte de ser invisível, provém de uma das canções que ele enviou para um dos intérpretes, que não gostou do tema e escolheu outro. “Mas gosto muito do título. Acabou virando uma metáfora, porque fala desse processo moderno em que você tem uma variedade tão grande de coisas que parece que você não tem nada. Ninguém se aprofunda. É o século da invisibilidade”, critica. “Eu mesmo nunca apareci porque não quis. Sempre fui um artista de background. Para mim, chegar no disco foi um processo natural, decorrência de tudo o que fui vivendo. Eu chegaria ao disco de uma maneira ou de outra.”
Agora, a medida em que se torna mais visível, Juliano Holanda se sente estranho: “É mais ou menos como se eu voltasse para o zero. Ainda não estou muito confortável.” Imaginem se ele estivesse.
O CD A arte de ser invisível, do compositor, arranjador, diretor e produtor musical e multi-instrumentista Juliano Holanda, reúne uma parcela significativa dos artistas com quem o autor trabalhou ao longo de 22 anos de carreira. Tem o ar de uma grande jam session digna de um tributo a um músico veterano. E estamos falando da estreia solo de um artista de apenas 35 anos de idade que, apesar de jovem e respeitado por muita gente, não tem precisamente o perfil dos nomes que integram a ala descolada da cena musical pernambucana devido a sua personalidade discreta.
Impossível de ser rotulado, o álbum pode ser classificado genericamente no rol da música popular brasileira, mas apresenta-se como uma MPB moderna, da concepção aos detalhes da execução, que aponta para novos caminhos. Os cantores e instrumentistas que participam da obra, em sua maioria, são nomes tão talentosos e invisíveis quanto o autor, muitos deles também compositores e intérpretes virtuosos.
O resultado é um disco tão impactante, guardados os devidos estilos e épocas em que foram lançados quanto os primeiros discos de Lenine (Olho de peixe, O dia em que faremos contato), Lula Queiroga (Aboiando a vaca mecânica), Alceu Valença & Geraldo Azevedo (Quadrofônico) ou Ave Sangria, sobretudo pelo aspecto da criatividade e do efeito provocado.
Que o diga o dramaturgo João Falcão, que após um encontro recente com Juliano, recebeu do músico um disco de presente e, na semana seguinte, ligou pedindo para utilizar uma das canções, Ímãs de geladeira, na série Louco por elas, da Rede Globo.
O tema, cantado por Carlos Ferrera, ex-companheiro de banda, é uma espécie de elo perdido de Juliano com o início da carreira. “É como se eu estivesse juntando as pontas. Ele é ator e uma das vozes mais expressivas da cena local. Também é uma música bem pessoal. Fiz para Mery (Lemos, sua esposa e produtora executiva do disco).”
Na faixa de abertura – a única em que ele canta –, Karma sutra, Juliano volta ainda mais para o passado. “Li (o conto) Sutra do girassol, de Allen Ginsberg, e me remeteu a muitas coisas de Goiana, da Zona da Mata. É a música mais pessoal do disco”, revela. “Me senti mais à vontade para cantar.”
As demais canções ficam a cargo de vozes bastante expressivas. Como Altas madrugadas, que tem apenas Marcelo Pretto (Barbatuques) cantando e fazendo berimbau de boca; Morada, em que faz uso da pegada trip-rock de Laya Lopes (Jardim das Horas); Antes e depois, que é inspirada na obra do escritor Manoel de Barros e interpretada por Jr. Black (“Acho Black uma das melhores vozes daqui. Sempre quis que ele gravasse uma música minha e mostrasse seu lado de intérprete”, justifica); ou Farol, que tem um acento lusitano, bem próprio de Geraldo Maia, que morou em Portugal. Esta última, que encerra o CD, ainda conta com a participação do acordeonista nova-iorquino Rob Curto. “Queria uma sanfona com outro sotaque”, explica.
A única regravação que conta no disco é Na primeira cadeira, já gravada por Gonzaga Leal, no CD reinterpretada pela cantora Ceumar, que mora na Holanda. “É uma das cantoras que mais ouvi. Sempre quis uma música minha cantada por ela”, conta.
Outro amigo, Jam da Silva, escolheu o tema mais antigo desse trabalho, Ouriço. “Pensei que ia ficar bem nesse flat de música eletrônica. Tem essa espacialidade. Ele sugeriu cantar também em francês e chamou Marion Lemonier, que tocava na banda dele”, lembra.
Outro amigo que tem uma participação que transcende à obra é Siba. Foi com ele que Juliano afirma haver aprendido a forma fixa de composição utilizando-se da métrica. Além de Horizontal, que ambos interpretam juntos, com participação de Areia e Gilú, a técnica aparece nas já citadas Altas madrugadas, Morada e Na primeira cadeira.
Por fim, em um disco de canções quase exclusivamente autorais, a única parceria na composição fica por conta de Domingo no sítio, dividida com o pianista, arranjador, produtor e curador Benjamim Taubkin. “Ele nunca tinha feito música com letra. Achava difícil. Peguei uma bem difícil dele e coloquei a letra. Ele chamou (a cantora) Tatiana Parra, a única pessoa do disco que eu não conhecia antes.”
Gravado e mixado no Muzak – com algumas vozes e instrumentos e vozes registrados em outros estúdios – e masterizado no Close to the Edge, em Londres, A arte de ser invisível surge como uma obra para ser ouvida e analisada em detalhes por amantes da música que, nadando contra a maré dos tempos atuais, ainda curte se aprofundar em alguma coisa.