ateus Araújo
Especial para o JC
Para Lia de Itamaracá, cirandar é verbo que se conjuga em coletivo; o mar e a areia são as pontes que lhe unem ao sagrado e a viagens antes nunca imaginadas. Alta, negra e elegante, a mulher que sempre sonhou em cantar (“O povo perguntava por que eu não quis cantar música de Nelson Gonçalves e Ângela Maria. Mas eu nasci pra ciranda. Cada qual com o seu qual”, lembra) se transformou em uma figura lendária na cultura brasileira. Hoje, com os pés na areia, vestido brilhoso, brincos e colares, e ostentando com orgulho o título de Rainha da Ciranda, Maria Madalena Correia do Nascimento (“Lia vem de Maria. Foi o apelido que me deram quando eu era menina.”) celebra seus 70 anos de vida, carregando consigo o que considera os maiores presentes: vitórias e amizades. A festa, neste domingo, é na beira-mar da Praia de Jaguaribe, em Itamaracá, a partir das 20h.
Lia nasceu e cresceu em Itamaracá. Foi criada por uma família adotiva, e logo na infância se apaixonou pelos folguedos populares. Adorava assistir aos pastoris e reisados, quando decidiu, aos 12 anos, fugir à regra e ser a primeira – e única – artista da casa. Nos anos 1960, período de efervescência do Movimento de Cultura Popular, Lia viu o auge da ciranda e virou um dos nomes recorrentes do ritmo praieiro. Em 1978, a cirandeira gravou seu primeiro LP, Rainha da Ciranda, entrando no ostracismo logo depois e ficando mais de 20 anos como merendeira numa escola pública da ilha.
Só nos anos 1990 é que Lia voltou à cena, graças ao empenho de regaste artístico do escritor Ariano Suassuna, à época secretário de Cultura do Estado, e do Movimento Mangue. Desde então, Lia se mantém ativa, e gravou dois CDs: Eu sou Lia (2002) e Ciranda de todos os ritmos (2008), chegando a viajar por todo o Brasil e também no exterior. “Eu vivia num mato sem cachorro. Mas já conheci o mundo, graças a Deus e graças à minha luta. Mas Itamaracá já me virou as costas”, diz. Nomeada Patrimônio Vivo de Pernambuco, em 2005, a cantora projeta, agora, gravar seu primeiro DVD.
Mas o maior sonho de Lia é outro: reconstruir o Centro Cultural Estrela de Lia, que desabou na última quinta-feira, com a força da chuva e do vento. No local, aconteciam rodas de ciranda e eram dadas oficinas de música e cabelo afro. “Isso mais cedo ou mais tarde ia acontecer. Não tenho ajuda de ninguém. Sozinha eu não posso fazer nada", disse a cirandeira, emocionada. Ele se deparou com a cena enquanto recebia a reportagem na sua casa. O espaço, de madeira e palha de coqueiro, já estava em estado crítico há pelo menos dois anos. Sem condições para reformá-lo, Lia aguardava a ajuda da Prefeitura de Itamaracá, o que não aconteceu. No entanto, procurada pelo JC, a secretária de Educação e Cultura da Ilha, Conceição Menezes, garantiu que vai ser tomada alguma providência até amanhã.
Em 70 anos de vida e 58 de carreira, Lia considera ter sido as amizades suas grandes forças para conseguir o sucesso. Na sua colorida casa, em Jaguaribe, ele empilha lembranças e as relembra numa conversa – sempre é assim – bem humorada. Foi com o sorriso que ela conquistou o carinho de muita gente, como é o caso do percussionista Naná Vasconcelos, que define a cantora como uma “explosão de cores, mas sempre sóbria e elegante”. Naná se lembra bem das primeiras vezes em que ouviu Lia cantar. Junto com a cantora Teca Calazans (a quem a Rainha da Ciranda atribui a autoria do clássico Quem me deu foi Lia), ele frequentava as rodas de ciranda para pesquisar a música e se encantou pelo trabalho dela. “Nos anos 60 e 70, depois do teatro, nossa diversão era ir para a ciranda. Teca adorava e cantava nos shows. Chegou a gravar, inclusive. Ela e o Quinteto Violado”, lembra o percussionista. “Lia é a ciranda viva. É simples, mas tem uma lírica poética maravilhosa, com profundidade. Ela é sinônimo de resistência, e guarda uma africanidade muito forte.”
Se na música ela é reconhecida por seu estilo particular – Lia já foi chamada de “diva da música negra” pelo New York Times, e é convidada de honra em todos os shows de Marisa Monte no Recife – a cirandeira da Ilha de Itamaracá é também querida pelo carinho com os amigos nos bastidores. “Ela é uma pessoa muito boa e batalhadora. Sempre me chama de mãe. E a gente brinca muito quando se encontra”, diz a coquista. “Quero que Lia viva muito, muito.”