O rapper carioca Black Alien contou, neste sábado (15), no Clube Português do Recife, que conheceu Chico Science em 1994 (ano do lançamento do emblemático Da Lama Ao Caos), dez anos antes de lançar o seu - até agora e por enquanto - filho único Babylon By Gus Vol.1 - O ano do Macaco. "Foi ele que me mostrou o Recife", disse. Pela alegria que se somava à data especial - vinte anos desde a última apresentação da Nação Zumbi com o malungo na Cidade - os mangueboys demonstraram uma profunda empatia com o Mister Niterói, que abriu o show da banda aniversariante.
A faixa que dá título ao disco do ex-Planet Hemp, e que também carrega uma sílaba de seu próprio nome (Gustavo de Almeida Ribeiro), é uma celebração: "Babylon By Gus / O fogo da vela me dá luz", "meus amigos são os mesmos / eles fazem jus". Rap para dançar, raggamufin para pensar e vice-versa. Ele anunciou o próximo volume do clássico: Babylon By Gus Vol.2 - No Princípio Era O Verbo, cantou o single Terra, e adiantou que a masterização do disco está sendo feita por aqui, nas mãos do produtor musical Buguinha Dub.
"É hip hop na minha embolada". Eis alguns dos ingredientes que o alquimista do mangue Chico Science jogou no caldeirão da Nação Zumbi. Um sem-número de sabores são adicionados, conforme o tempo passa e os músicos degustam outros sons, para castigar a surdez. As rimas do rap, tão íntimas de Black Alien, toparam com a Nação Zumbi - é, por sinal, um terreno que Jorge Du Peixe anda firme, como se pode conferir nas suas interpretações de Samba do Lado, Cidadão do Mundo e Etnia, as três do Afrociberdelia.
"Things'll never be the same" (As coisas nunca mais serão as mesmas, em português) - profetiza o rapper Tupac Amaru, em Changes. O mesmo se pode aplicar À Praieira. Há que modernizar o passado. No 2015 da Nação Zumbi, a música que estremecerá mais uma vez os rios, pontes e overdrives do Recife no próximo Galo da Madrugada - em 2016, o bloco homenageia Chico Science -, com o baque seguro, se transmutou em uma evolução musical. "Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar", portanto.
O couro das alfaias de Gilmar Bolla 8, Gustavo Da Lua e Tom Rocha, em tempos que a banda se desapega do maracatu enquanto rótulo, não afrouxam - o vocalista do Combo X parecia mascar chiclete o tempo todo, entretanto soube estar presente no palco, sobretudo na presença do baque do maracatu. As rodas de pogo formadas durante as músicas Da Lama ao Caos (Da Lama ao Caos, 1994), Manguetown (Afrociberdelia, 1994), Meu Maracatu Pesa uma Tonelada (Nação Zumbi, 2013) e Hoje, Amanhã e Depois (Futura, 2015) estavam mais confortáveis que a penumbra apertada dos camarotes, ainda mais durante a execução faixas mais recentes como Bala Perdida (Nação Zumbi, 2014), quando tudo vira um pano musical de várias texturas para as sensações inéditas: no mesmo lugar, vários mangueboys dançavam em um lento transe, num êxtase provocado pelo som cristalino e cortante, na responsabilidade do técnico de som Pablo Lopes, do Fábrica Estúdios. Não estávamos mais no mesmo lugar.
Rasgando o tempo das alfaias "grooviadas", o percussionista Toca Ogan. Os sons dele aparecem brincando com a bateria de Pupillo - presente, ora pesada - e evoca as raízes culturais como se fossem um relicário com parte da NZ que guarda Pernambuco mais forte - no entanto, sem deixar de ser cidadão do mundo, como todos os outros da banda o são. Os outros da banda - incluindo o guitar hero Lúcio Maia, cujas distorções e riffs e brilhos de suor no peito falam por si só - foram apresentados, um a um, por Jorge do Peixe, que falou por último: "agora, o mestre Toca Ogan!". E o pequeno dançava e revivia aquele 27 de setembro de 1996, quando o amigo e parceiro de banda estava lá. "Chico está hoje por aqui", defendeu Lucas Marques, 24 anos, que nunca chegou a assistir o ídolo mangueboy ao vivo, "mas é como se tivesse visto, pela intimade com a música dele."
Na foto, hoje desgastada, é possível ver o bilhete do show de lançamento do Afrociberdelia
Foto: Cortesia
Lúcio estava desperto no palco: chamava o público para a banda, certamente lembrando do inacreditável derradeiro show de Chico na sua Manguetown, Recife. É possível ver, nas imagens disponibilizadas no canal do Acervo Chico Science, no YouTube, um Clube Português de movimentos frenéticos e quase insanos que acompanhavam a movimentação de Chico, igualmente assim. Talvez essas imagens o passassem na cabeça, assim como nos passou a todos, como numa grande oração da memória. Numa dessas de interação de Lúcio com o público, o guitarrista ostentou uma camisa do Santa Cruz Futebol Clube onde podia-se ler, nas costas do uniforme, a inscrição de seu nome. Esse momento foi curioso e - não fosse a derrora do time coral para o Vitória no mesmo dia - cairia bem tocar Umbabarauma para celebrar o clima futebolístico no clube.
"Essa não é a melhor hora para andar", advertiu Zena Miranda, 36 anos, que pulava estrategicamente à esquerda do palco. No miolo da pista, o maracatu pesava uma tonelada e só se poderia chegar até lá andando de lado, feito caranguejo, e pulando. A Avenida Agamenon Magalhães, Complexo Turístico Cultural Recife-Olinda, tem um canal como artéria única entre as pistas. Das últimas vezes, a Nação Zumbi tocou em espaços mais afastados da correria do Centro da Cidade. Mas cantar "Fui na rua jogar bola, ver os carro correr / Tomar banho de canal / Quando a maré encher" (Propagando, 2004), versos de uma música original olinda style - da Banda Eddie -, fez todo o sentido naquele local. Foi um show no qual se ria ao acaso, pois a felicidade já estava encomendada.
DOCUMENTÁRIO
A equipe de filmagem do documentário biográfico Chico Science: Um caranguejo elétrico, sobre a vida do ex-líder da Nação Zumbi, estavam à todo o vapor em meio a fumaça no ar. O diretor e roteirista José Eduardo Miglioli estava acompanhado do diretor de fotografia, cinegrafistas, assistentes e técnicos de som, à postos na pista mesmo antes de as cortinas serem abertas. Foram registradas por eles as músicas e as palavras ditas em homenagem a Chico Science, gravadas a partir do público e em frente ao palco.