Numa entrevista em fevereiro de 1976, David Bowie declarava: “para provocar um movimento artístico é preciso construir algo e, em seguida, destruí-lo. (...) A única coisa que se pode fazer é o que os dadaístas, os surrealistas fizeram: amadores totais, pretensiosos como o diabo, e que detonam a coisa toda. Basta causar o máximo de constrangimento possível, para se ter a chance de criar um movimento. Mas só se cria um movimento quando se tem uma causa rebelde”.
A carreira de Bowie foi erigida sob máscaras e metamorfose constante. Como personagens na eterna busca por um ator. Ele foi o extraterrestre andrógino Ziggy Stardust. Foi também o junkie frio e perturbador Thin White Duke e o astronauta Major Tom, à deriva no cosmos da corrida espacial. Abraçou o grupo alemão Kraftwerk e o músico Brian Eno para mergulhar na depressão da Berlim pós-guerra. De lá saiu com as espirais eletrônicas Low, Heroes e Station To Station. Depois vestiu-se como o soulman de Young Americans e parceiro funky de Nile Rodgers em Let’s Dance. “Minha persona é tão confusa que confunde até a mim mesmo”, diria o camaleão.
Bowie foi elo de transição na corrente da história pop. A utopia e idealismo hippie foram enterrados junto com Hendrix, Joplin, Morrison e Brian Jones. A guerra do Vietnã continuava levando jovens americanos para a morte. Os Rolling Stones, após o assassinato de um fã no festival de Altamont, fechavam os anos 1960 com o laço negro de Paint It, Black. Enquanto isso Bowie, filho da classe média inglesa pós-guerra, abria a década seguinte com a explosão de glitter do glam rock.
Junto com o amigo Marc Bolan, do T. Rex, Bowie trazia de volta a ebulição sexual e a androginia de tipos como Little Richards. Falava abertamente sobre sua bissexualidade num tempo em que ser gay era crime. Era a revolução do hedonismo, da liberdade, da libertinagem e da indefinição – “é um homem ou mulher?”, Perguntavam as manchetes da época. Na icônica performance no programa Top Of The Pops, em 1972, encarava a câmera e convocava com os versos de Starman: “Eu tive que ligar para alguém então escolhi você. Não conte ao seu pai ou ele irá trancar-nos por medo”
Uma revolução efêmera, sem “significados”, sem certo ou errado. “Não tenho nenhuma mensagem. Não tenho nada a dizer, nenhuma sugestão ou conselho”, afirmou. Era, nas palavras do próprio, um artista de artifícios. Usou o rock como uma ferramenta e não imposição. “Talvez eu tenha mostrado que o rock ‘n’ roll é uma pose”.
Bowie bebeu das artes plásticas expressionistas, da psicodelia do Velvet Underground, da música de vanguarda e esteve sempre ligado à moda. Foi também amigo particular do escritor William Burroughs, seu mentor intelectual. Sua máxima: “a música está sempre atrasada em relação às outras artes”.
A influência de Bowie ressoou nos mais diversos terrenos da música. De divas pop como Madonna e Lady Gaga ao experimentalismo da banda japonesa Xiu Xiu – que regravou uma versão de Under Pressure, clássica parceria com Queen. Do indie rock do Arctic Monkeys e Sea And The Cake ao rapper Jay Z, que sampleou o hit Fame na música Takeover. Em seu último show, Kurt Cobain cantou uma versão dolorosa de The Man Who Sold The World, registrada no CD e DVD do Nirvana MTV Unplugged in New York.
Até o último momento de vida Bowie foi um artista inquieto e sempre aberto a transformações. Lançado na última sexta-feira, no dia de seu aniversário, o álbum Blackstar carrega influências de músicos de novas gerações geração. De acordo com Tony Visconti, amigo e produtor de longa data, Bowie andava ouvindo muito o rapper Kendrick Lamar, o DJ Jamie XX e o combo indie eletrônico LCD Soundsystem. “Ele começou a usar sintetizadores e percussões e teve inúmeras ideias”, contou à Billboard.
Pressentindo a morte, Bowie correu para lançar seus últimos álbuns, cheios de referências. The Next Day (2013) refazia a famosa capa de Heroes (1977). Segundo Visconti, Blackstar foi o "presente de despedida" do músico. Com apenas sete músicas e 45 músicos, é o primeiro álbum a não ter uma foto de Bowie estampada na capa. No lugar, apenas uma estrela negra.
O clipe de Lazarus, o primeiro single, mostra Bowie na cama do hospital e começa com os versos: “Olha aqui em cima, estou no céu, tenho cicatrizes que não são vistas, tenho drama, não se pode roubar, todo mundo me conhece agora”. E termina se despedindo: “Igual a um pássaro azul. Serei livre. Isso não é típico de mim?".