Em O Demônio do Meio-Dia, o escritor Andrew Solomon traça uma anatomia da depressão: “É como sentir sua roupa lentamente se transformando em madeira, uma rigidez nos cotovelos e joelhos progredindo para um terrível peso e uma isolante imobilidade que o atrofiará e, dentro de algum tempo, o destruirá”, descreve ele sobre a doença que sofreu na própria pele.
Os curitibanos da Concreto Morto não tratam exatamente (ou somente) sobre este grande mal do século, mas a sensação de aprisionamento e claustrofobia de suas músicas possuem relação análoga. Particularmente em seu novo EP, intitulado A Necessidade de Produzir Sempre Foi Antagonista do Desejo de Criar, que é acompanhado por um encarte/zine com ensaio, desenhos e poema (veja galeria).
O impulso poético do disco vem de uma ferida que é ao mesmo tempo pessoal e social: “Ah, a gente é um bando de anticapitalista que percebeu que, mesmo trabalhando com o que gosta, a gente não se realiza. O hobby vira obrigação”, comenta modestamente o vocalista Felipe Augusto. “Esse EP, mesmo que sem querer, tem muita influência do CrimethInc, um coletivo anarquista famoso. O Concreto acaba sendo sem querer uma banda sobre frustrações e o trabalho é uma das que mais marca a gente”, explica.
O tema já aparecia em Viver Só (2014), primeiro EP do grupo, em faixas como Altas Doses de Cafeína nos Suicídios Semanais e A Abolição do Trabalho (interpretada pela Excria Reverbera). Mas a questão é mais urgente neste novo disco. Em cinco músicas, numeradas como Documentos, a banda vai de ruídos eletrônicos ao punk rock gritado e visceral da faixa-título e de Germinal. Um golpe sonora rápido, abrupto, violento e cortante.
Contudo, o cerne do disco é a gelidez dos sete minutos de Ciclo Contínuo, Fome na Colheita. Sob um estático pano de fundo cacofônico, repetem-se perguntas obsessivas: “Quem foram meus antepassados nas lavouras das engrenagens? Quem foram meus pais em meio a toneladas de papéis e documentos que nem sequer lhes diziam respeito? Quem sou eu, enquanto envio bytes e mais bytes de informações pessoais às autoridades e grandes corporações em troca de bytes e mais bytes de informação inútil?” E a inconclusão: “Responder a essas perguntas é o mesmo que tentar cortar-se com palavras que não são afiadas, enforcar-se com frases que jamais formarão nós”.
Espontaneamente, o disco capta o mal-estar psíquico e existencial de nosso tempo, como analisado, entre outros, por Joel Birman. No seu livro O Sujeito na Contemporaneidade, o psiquiatra e psicoterapeuta brasileiro apresenta relatos clínicos do que chama de “síndrome de fadiga crônica”, caracterizada por um cansaço absoluto, falta de impulso, imobilidade corporal. Os pacientes lhe falam de uma perda de vitalidade e envolvimento com as pessoas, remetendo a uma potência que se esvaiu. O autor resume este mal-estar contemporâneo como marcado pela apatia, impotência, vazio e fadiga de si mesmo.
Birman aponta como causa dessa crise a infiltração do “ideal do excesso” no psiquismo, que transforma a ação em categoria imperativa (agir, logo existir). Paralelamente, a Concreto menciona uma “submissão ao desempenho”. Ainda em Ciclo Contínuo, afirmam: “Yes we can. Antes a regra era a proibição; agora, tudo é permitido em nome do avanço e do progresso. (...) A positividade do desempenho gera depressivos, ansiosos e fracassados, faz com que exploremos a nós mesmos e com isso nos tornamos agressores e vítimas simultaneamente”.
E então, como quebrar essas algemas da alma e do corpo? Não há resposta objetiva e nem mesmo a Concreto – ou Birman ou Solomon – se propõe a responder. A força reside justamente no enfrentamento, já posto, dessas feridas. Como diz o poema de Aline Vieira (do Excria Reverbera, Flores Feias e Cama Desfeita) no zine/encarte do disco, é mover ou morrer.