LGBT

De trans a queer, a música brasileira abre espaço para o empoderamento

As Bahias e A Cozinha Mineira, com vocalistas trans, e o multiartista Lineker são destaques da nova cena LBGT da música brasileira

Mateus Araújo
Cadastrado por
Mateus Araújo
Publicado em 16/05/2016 às 11:05
Luis Signorini Novais/Divulgação
As Bahias e A Cozinha Mineira, com vocalistas trans, e o multiartista Lineker são destaques da nova cena LBGT da música brasileira - FOTO: Luis Signorini Novais/Divulgação
Leitura:

SÃO PAULO (SP) - Assucena Assucena e Rafael Acerbi não escondiam a felicidade da notícia recém-chegada. Mulher, primeiro disco de As Bahias e A Cozinha Mineira, foi solicitado pela comissão do Prêmio da Música Brasileira para audição. Assim, a vocalista e o guitarrista começavam a entrevista, numa pausa em meio ao dia puxado de reuniões. A banda vigorosa e cheia de pluralidade, a julgar pelo nome - imagine você o que existe entre a Bahia e Minas Gerais - tem vivido essas explosões de felicidade e visibilidade desde que lançaram o álbum, no ano passado. "Mulher nos pare como artista", sentencia Assucena.

Não é à toa que o feminino permeia as 13 canções do disco, disponível na íntegra na internet. Emaranhadas numa concepção mitológica, sem coincidências, as composições são na verdade discurso político e fazem parte de uma transgressão. Feito aos poucos, maturado durante três anos, o trabalho nasceu ao mesmo tempo em que "surgiram" Assucena e Raquel Virgínia, a outra vocalista, que logo em seguida se juntou à entrevista. Elas duas, ambas transexuais, e Rafael se conheceram ainda na faculdade de História, na USP, e se encontraram através da música. "Viemos de uma turma em sintonia de discutir arte, filosofia, política e história", conta Rafael.

Ouça o disco Mulher gratuitamente:

A ousadia da cantora Gal Costa, a busca pela afirmação de um corpo livre e a militância contra preconceitos deram o suporte conceitual e musical à obra da banda paulista que carrega no nome a mistura brasileira. "Esse disco é um somatório de situações. Foi feito ao mesmo tempo em que vivíamos nossa transformação - não que ele nos legitime, enquanto eu e Raquel vivíamos uma depressão, em 2012, e enquanto questionávamos o racismo e o elitismo dentro da universidade em que estudamos, a USP", destaca Assucena.

As reflexões desaguaram em músicas que questionam a normatividade da sociedade. "É um disco que faz parte de um processo em que muitos artistas trazem para o debate a força do feminismo", ressalta a cantora. Sim, em Mulher, escutam-se referência da Virgem Maria a marias anônimas, que diariamente tentam subverter uma história narrada pelas vozes do machismo - das retirantes nordestinas à Mãe Menininha do Gantois, ialorixá baiana que é saudada com uma composição, de histórias de submissões à busca pelo empoderamento - palavra tão em voga atualmente.

A musicalidade de As Bahias e a Cozinha Mineira mistura rock, samba, reggae, forró e efeitos eletrônicos. As rimas, interpretadas com vozes verborrágicas, transitam da alegria ao manifesto, de maneira envolvente e dançante. A Bahia é referência ao apelido das cantoras (Assucena nasceu em Vitória da Conquista, e Raquel, de São Paulo, morou por um tempo em Salvador), já Minas é a cidade de origem de Rafael, também berço das suas grandes admirações musicais.

Galcostiana, como se classificam, As Bahias e a Cozinha Mineira são um dos símbolos da atual geração de transexuais que assumem espaço de destaque na cena musical brasileira - outros artistas têm ganhado visibilidade, como a vocalista Verônica Valenttino, da banda Verônica Decide Morrer, do Ceará. Mulher, um disco pautado pela provocação e pela reflexão, aos poucos vai conquistando o público. Já virou show e chega ao Recife no segundo semestre deste ano, com a turnê da festa Salada de Frutas, em que a banda divide o palco com Liniker e Rico Dalasan, nomes atuais da geração LGBT da música brasileira. A data e o local do show, no entanto, ainda não estão fechados. 

QUEER 

As questões de gênero que permeiam a música brasileira, atualmente, também ganharam forma na arte de Lineker. Multiartista - de bailarino a diretor - o rapaz mineiro radicado em São Paulo transpõe nos seus gestos e canto a performatividade da afronta. Camaleônico, ele une barba ao salto alto, músculos a batom e tons graves e agudos da voz para cantar fazendo de si exemplo do fim das regras polarizadoras que separam o masculino do feminino.

"Não faço nenhum esforço para ser masculino ou feminino. É como se a classificação não existisse", conta Lineker, que tem o nome parecido com outro cantor da atua safra nacional também sintonizado com as desconstruções da sexualidade: Liniker - eles se diferem no "i" e no "e".

Em 2012, Lineker lançou seu primeiro disco, eLe, com releituras de importantes obras da música popular brasileira; em 2014, lançou o single e o videoclipe Gota por Gota; em 2015, estreou com o single e videoclipe Leite; e em fevereiro deste ano, terminou o EP Verão, álbum com canções de novos compositores da MPB.

Barbado e em cima de um salto alto, o rapaz explora sem medo a oscilação dos tons de voz entre agudo e grave para cantar amores, dores e transgressão. "Para mim, o queer (teoria sobre a desconstrução de gêneros) é poder transitar, brilhar um pouco, entre o masculino e o feminino", conta Lineker, para quem os avanços de espaço e visibilidade de artistas como ele é também uma questão política. "Estamos vivendo um momento muito importante na nossa arte, de desconstrução. A cultura de massa, possivelmente, vai se apropriar disso, mas se a gente, artistas, continuar a exercitar o poder de subversão, é possível continuar abrindo brechas."

Últimas notícias