O canto difônico da Mongólia (ou throat-singing) é uma variante particular dos diversos tipos de cantos harmônicos praticados popularmente na Sibéria, Mongólia e Tuva. Registrado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como Patrimônio Cultural da Humanidade, esta forma de cantar é constantemente reconhecida dentro de um viés puramente folclórico, musicológico ou antropológico. A cantora Sainkho Namtchylak, porém, quebra estes engessamentos: sua arte respira vida e beleza sem cair na vala dos exotismos simples.
Like a Bird or Spirit, Not a Face, o novo álbum de Sainkho, é sobre a força imanente da memória e do afeto. É também um encontro de ancestralidades. O disco tem participação de Said Ag Ayad e Eyadou Ag Leche, da banda Tinariwen, vencedora do Grammy. Ambos são da etnia tuareg, povo nômade que habita a região do Saara e norte da África.
“Às vezes a música é um acontecimento inesperado, que pode abrir novos horizontes e possibilidades. Eles tinham dois dias livres em sua agenda ocupadíssima. Ao sentar com eles na cozinha do estúdio Black Box, em algum lugar do sul da França, eu fiquei tentando imaginar sua terra natal, ouvindo suas melodias suaves e tenras”, escreve Sainkho no encarte do CD.
Em parceria com os tuaregs, a cantora deixa de lado sua abordagem experimental eletrônica e abraça a tradição de seu país – Tuva, uma divisão da Federação Russa, na divisa com a Mongólia. Não se trata de uma reivindicação do “verdadeiro” ou de uma “essência”. É uma forma de contemplação do mundo que nos cerca – e a iminente fragilidade do ser humano diante da imensidão da natureza.
O tema já atravessava a obra de Sainkho há um bom tempo. “Tudo chegará a um fim. Você continuará a ser uma estrela ainda não descoberta por ninguém”, diz uma de suas máximas mais conhecidas. Agora, de peito aberto, ela canta em The Road Back: “Tudo virá ao fim/ Depois das longas estradas,/ Aqui está/ O lugar no qual nasci/ O lugar da minha infância”.
Em Worker Song (Nomads Dance Around the Fire), a música é levada apenas pela percussão marcante de tambores. Sainkho então se joga com vocalizações harmônicas (quando cria-se mais de uma melodia ao mesmo tempo), explorando a garganta numa expressão da ordem do inconsciente e do transe.
O disco encerra com Nostalgia To, um lamento pessoal e político. Saikho resigna-se num acalanto doido a todos os refugiados, de todo mundo: “Estou ficando cansada, estou ficando faminta/ Do fundo do meu coração eu sinto saudades do meu lar/ Eu gostaria de ver a minha casa uma última vez”.
Seja em mongol, em inglês, ou com sons indefinidos extraídos da garganta, a mensagem é tocante, potente e atravessa todas as fronteiras do globo. A própria Sainkho toca no assunto, ainda nas notas do encarte. “Música é uma linguagem muito universal. Nestes dois mágicos dias, conheci lindos músicos da África. Era uma honesta conversa musical entre corações, é só o que lembro. Eu posso dizer para mim mesma: a beleza da natureza é infinita, como as melodias da humanidade. O coração aberto é a nossa conexão”.