Imagine que você quer começar a tocar um instrumento musical. Para comprar uma guitarra ou baixo elétrico usado mais um pequeno amplificador, você gastaria algo em torno de R$ 450 reais. Se quiser uma bateria, a mais surrada custa uns R$ 800 – sem contar os pratos, que exigiriam mais R$ 500, no mínimo. Mas digamos que você queira um instrumento de sopro. Para um saxofone usado seria preciso desembolsar pouco mais de R$ 1 mil. E um fagote não sai por menos de R$ 7 mil.
Já desestimulou? Imagine agora essa situação para um adolescente do Coque ou algum outro bairro e cidades de baixa renda. A cultural musical tradicional impõe uma estrutura que sustenta brutal desigualdade, concentrando “talento artístico” em indivíduos particulares, normalmente aqueles privilegiados nas condições materiais da existência.
A última vez que Marcelo Campello foi entrevistado para um veículo da grande mídia foi em 2008, quando saiu do Mombojó. Mas o músico pernambucano está longe da inatividade. Pelo contrário, ele desenvolve um trabalho que busca, a partir da expansão da matéria musical e potencialização da escuta, democratizar a criação artística.
Em seu doutorado pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campello tem como tema a “acessibilidade, sustentabilidade e diversidade dentro da composição”. Para aplicar os conceitos da pesquisa na prática, ele criou a Oficina Gambiarra, que reúne dezenas de crianças de comunidades periféricas em aulas livres e abertas. Nessas oficinas ele ensina como construir instrumentos próprios com materiais simples e baratos (como um saxofone e um fagote feitos de canos de PVC e canudo), quebrando barreiras estruturais ao mostrar que a música está ao alcance de tudo e todos.
“Fiquei durante dois meses acampado no Cais José Estelita. Foi a principal experiência de campo, mas depois disso a oficina atuou em diversos atos pelo direito à cidade e em comunidades de baixa renda”, diz Campello, que no fim de agosto levou a Oficina Gambiarra ao bairro dos Coelhos (veja galeira abaixo). “A ideia é utilizar os recursos que estão disponíveis localmente, numa estética gambiarrística. Fazer música com o que está no entorno e criar novas ideias de beleza musical numa pegada experimental”, explica.
O trabalho é permeado por inquietações estéticas (as “novas ideias de beleza” a que ele se refere), mas também e principalmente questões políticas. “A abordagem ‘clássica’ da música, dos sons, dos objetos musicais é essencialmente ‘inacessibilizante’ na medida em que cria um conjunto válido de objetos e sonoridades supostamente musicais – e ao mesmo tempo deslegitima o resto do planeta”, critica. “Quantos objetos estão no nosso redor agora que se encaixam nesses parâmetros? Quantos objetos agora estão dentro da escala temperada, por exemplo?”
Ressaltando a necessidade de uma “música de urgência”, Campello reflete: “o objetivo é fazer música. Se você parte de modelos que limitam ao extremo a matéria musical, você já cria um problema grave de elitizar o processo”. Batucando em um porta guardanapos, ele propõe: “A gente poderia estar pensando numa música em que essas coisas estão soando, elas têm grave, têm agudo, têm ressonância. A gente poderia estar fazendo música em lugares que, segundo os padrões atuais, não se poderia se fazer música. Eu vejo que uma estratégia de acessibilidade é essa ruptura com a escala temperada”.
Ecocrítica
Campello aponta que essa acessibilizade pode ser pensada em diversos âmbitos, não apenas na instrumentação. “Você pode pensar isso em cada etapa, desde os territórios. O ideal de território musical dominante hoje seria um espaço fechado, privado, acusticamente tratado, com pessoas sentadas e o modelo de palco italiano estabelecendo a dicotomia entre palco e a plateia. E quantas pessoas podem dispor de um ambiente como esse? É justamente fazendo uma ecocrítica sobre o status quo musical compositivo que a gente pode refletir alternativas. Se a gente tem um establishment territorial da música nesses moldes, com técnicas sofisticadas e caras, você pode pensar, por outro lado, num espaço público e aberto. Pode ser tratado também, mas com técnicas mais acessíveis”, analisa.
Ele aprofunda: “Ainda antes do território vem a associação musical, que é o que permite você conquistar o território. Essa associação hoje é vertical – as decisões do coletivo são centradas em uma figura e não exatamente em rede. No caso da orquestra sinfônica, passa pelo maestro e tem até uma hierarquia dos instrumentistas, que tocam instrumentos designados. Na banda, que seria menos vertical, você tem o vocalista. E se dá até na legalidade, como as composições são remunerados pelos direitos autorais. Se não me engano, é 50% para o letrista, 25% pro arranjo, 25% pra quem compõe. E é uma organização fechada porque é um grupo de determinadas pessoas que sai e ensaia”.
Campello então contrapõe: “É diferente da Oficina Gambiarra, que é um modelo aberto e quem quiser pode participar. Ninguém vai deixar de fazer música porque não tem um objeto. É nômade, em oposição ao sedentarismo, porque não tem posição fixa no coletivo. Você pode pensar no formato rotativo. Eu penso num coletivo aberto, nômade e cooperativo, em oposição ao competitivo”.
Diferente de alguns artistas da música experimental que fazem a crítica da noção de Música (como uma anti-música ou antiarte), Marcelo Campello, por outro lado, se interessa em expandir a concepção musical. “A gente até poderia inventar uma palavra pra isso, mas a música pensada de maneira ampla já abarca essa diferença. Na verdade a música pode ser pensada como organização de fluxos energéticos. Você não precisa pensar necessariamente em som, mas pode pensar numa música de luzes, uma música de movimento, de coreografia. Hakim Bey fala em música como princípio de organização de sociedades. Platão também fala nisso n’A República”.
Pensando seus instrumentos autoconstruídos e a atuação da Oficina Gambiarra, ele ressalta o aspecto social que envolve a música e sua transformação. “Isso tudo é empoderamento. Porque de posse dessas ferramentas compositivas, podendo criar as suas próprias ferramentas compositivas, você pode mexer no ambiente, na cultura e na maneira de existir”, conclui.
Ideias aplicadas em discos
As ideias de Campello também se refletem em seus discos e composições para trilha sonora de filmes ao reinventar o instrumentário de formas diversas. O álbum Bestiarum (2015, Seminal Records), por exemplo, é composto por um quarteto de cordas clássico junto com os músicos Albertu Silva, Hugo Medeiros e Henrique Vaz (membro do Hrönir e parceiro de Campello no grupo Poruu). Eles tocam de formas não-convencionais, explorando também o corpo dos instrumentos e incorporando “ERM vibration motors”, microfones de contato e outros dispositivos.
Com os mesmos parceiros de Bestiarum, Black Rhino (2015) – trilha do filme Acorda, de Chico Ludermir, para o movimento Ocupe Estelita –, Campello utiliza seu fagote de PVC para criar uma elegia. É uma música concebida como “um lamento ao último rinoceronte de sua espécie vivo na Terra, que vive vagando solitariamente à procura de seu semelhante”.
Já na trilha sonora de História Natural (2014), curta-metragem de Júlio Cavani, o músico utiliza um gongo de aço inox com água, um escavador odontológico (para raspar o gongo), guitarra semiacústica preparada (com fitas magnéticas presas às cordas, para fricção), entre outros instrumentos.
O propósito, ele explica, é “abordar um instrumento tradicional com técnicas ditas expandidas (um termo que já está caindo em desuso) ou reinventar o instrumental. Quando você parte de um instrumental novo, você tem mais chance de ‘inovar’ porque ainda está se convencionando a abordagem. A educação formal ainda é muito aprisionadora”.