A repetição recorrente de “música pernambucana” muitas vezes impõe o termo como um gênero musical próprio, uma tag que evoca, com purismo, os ritmos tradicionais do Estado. Mas a música é muito maior. Falar em uma “música pernambucana” é falar em um fluxo de diversas estéticas, cenas e circulações que formam um todo mais amplo: do cancioneiro ligado à MPB ao o rock e heavy metal, passando pelos ruídos do experimental, o brega, o rap, o frevo, o indie. Em 2016, essas áreas tiveram um fortalecimento e um contexto específico. Apesar das incertezas do mercado para o próximo ano e da mesmice das FMs, os artistas continuam lançando trabalhos de alto nível.
Depois de diversos shows ao lado de Juliano Holanda, Walter Areia e Zé Manoel, a cantora Isadora Melo finalmente lançou seu primeiro álbum. Sutil e singelo, Vestuário tem potencial para colocá-la no mesmo patamar das cantoras mais celebradas da tal “nova MPB”. Residindo em São Paulo, seu parceiro Zé Manoel também foi destaque com Delírio de um Romance Aberto, songbook organizado pelo selo Joia Moderna com interpretações de Ná Ozzeti, Juçara Marçal, Elba Ramalho, Ayrton Montarroyos, entre outros.
O frevo apareceu recombinado com jazz, maracatu e improvisações no contundente Sangue Negro, do pianista Amaro Freitas, e aprimorado em Frevo Sanfonado, onde a SpokFrevo Orquestra revisita a tradição do frevo com sanfona. Para coroar, o Maestro Forró, criador e regente da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, foi nomeado ao posto de imortal da Academia Pernambucana de Música.
O forró pé de serra foi alçado (ainda que meteoricamente) a nível nacional com a vitória da banda caruaruense Fulô de Mandacaru no programa Superstar. O mesmo ritmo foi colocado em uma perspectiva pop/global por Barro, da Bande Dessinée, em Miocárdio, seu primeiro trabalho solo. O disco o levou ao palco do Circo Voador (Rio de Janeiro) e do projeto Prata da Casa, do Sesc Pompeia (São Paulo), destinado à nomes emergentes. A banda de pós-rock instrumental Kalouv também foi convidada do Prata da Casa em agosto – antes, em março, eles haviam circulado pelo Sudeste e Sul do País por conta própria. Os meninos da Amandinho também fizeram uma turnê independente, mas em proporções épicas: foram de Pernambuco a Sorocaba de carro, fazendo 12 shows em sete Estados.
Pernambuco também foi destaque na seara da composição. Autor da trilha sonoras de diversos filmes (incluindo o aclamado Aquarius), Mateus Alves aprimorou seu trabalho com a música de Brasil S/A, filme de Marcelo Pedroso. Após vencer o Prêmio Funarte de Composição Clássica com a peça Romantic Games, Armando Lôbo prepara um novo álbum para o ano que vem. Mas o grande destaque foi Levaguiã Terê, segundo álbum de Vitor Araújo, viabilizado pelo Natura Musical, que apresenta uma fusão mesmerizante de orquestrações minimalistas, ruídos eletrônicos e percussão afro.
A cena experimental do Recife é ativa desde os anos 2000, com apresentações locais, nacionais e até participação de nomes internacionais. Mas este ano o núcleo noise teve uma expansão considerável. O grupo Hrönir lançou um novo álbum e foi responsável por abrir o Festival Internacional de Música Experimental, julho em São Paulo, na mesma noite do ícone do free jazz Peter Brötzzman. Os músicos Yuri Bruscky, Caio Lima, Mateus Alves e Henrique Vaz, expoentes da música exploratória local, fizeram a trilha sonora ao vivo da sessão de encerramento do Janela Internacional do Recife. Para completar, o ciclo de arte sonora Rumor, que acontece há pouco mais de um ano, foi aprovado no Funcultura. Com isso, o projeto vai trazer no próximo ano apresentações da catarinense Flora Holderbaum e da paulista Lílian Campesato (pesquisadora de referência da música de ruídos) – além de nomes locais.
A independente Trama e o selo PWR (ambos coordenados por Hannah Carvalho e Letícia Tomás) e a festa Life’s Too Short foram responsáveis por movimentar o circuito indie com shows de diversas bandas, tais quais El Toro Fuerte, Jonathan Tadeu e Fábio de Carvalho (MG), Catavento (RS), Máquinas (CE), Bike, Paula Rebellato e Carla Boregas (SP), My Magical Glowing Lens (ES), Ventre (RJ) e Little Monster (China). O site Hominis Canidae também fez dois mini-festivais no Recife: a primeira em março e a segunda em junho, dentro do Dia da Música.
Entre o povão, nas ruas do centro do Recife, nas feiras e carrinhos CD pirata, um dos maiores hits foi Chora Boy. Com vocais soulful, floreios de violino e beat espacial, a música do MC Menor denota uma metamorfose na estética do brega recifense. Ao invés do ritmo frenético e sonoridade electro (como em Sou Favela e Mundo da Putaria, dois sucessos de 2012), o gênero desacelera o andamento e aprimora sua pós-produção, abrindo espaço para hibridizações musicais e visuais com uma gama de gêneros que vai do hip hop, R&B e música eletrônica ao arrocha e swingueira. Essa mudança é ouvida também em muitas outras canções deste ano: Bumbum no Ar (de MC Troia e MC Tocha); Encontro das Devassas (MC Sheldon); Eu, Você e Um Segredo (MC Cego Abusado).
Mas foi com o rap que Pernambuco repertiu nacionalmente. A música Sulicídio, parceria do rapper de Paulista Diomedes Chinaski com o baiano Baco Exu do Blues, caiu como uma bomba no cenário do hip hop ao denunciar a centralização do movimento no eixo RJ/SP e reivindicar visibilidade para a cena do Norte e Nordeste: “Como é que você nunca ouviu falar/ Nos bruxos lendários do Norte?”. Lívia Cruz estourou com Eu Tava Lá, uma resposta à letra machista e misógina de Quem Tava Lá?, do grupo paulista Costa Gold: “Porque rap é pra homem, né?/ mas cê é cobrada dez veiz mais só por ser mulher”. Em 2017, Diomedes, Lívia Cruz e outros rappers (incluindo o consagrado Zé Brown) virão com novos trabalhos e prometem mais barulho na cena.
OS DEZ MELHORES DISCOS
O universo sonoro e cultural do Bongar está ligado à jurema, culto afro-indígena disseminado em diversas regiões do Nordeste. Com produção de Beto Villares e Juliano Holanda mais engenharia de som de Buguinha Dub, Samba de Gira traz uma das operações sonoras mais impressionantes da música brasileira contemporânea. Corresponde à afirmação de vitalidade e atualidade de expressões culturais ancestrais, “desfolclorizando” a música tradicional.
Massacre de Golfinhos em Taiji, de Hrönir
Tendo como mote o documentário The Cove e a prática brutal de caça aos golfinhos no Japão, o álbum – o primeiro do Hrönir em nove anos – é uma narrativa arrebatadora de horror e violência sob uma topografia sonora ruidosa e acidentada.
Sangue Negro, de Amaro Freitas
Levando elementos de frevo e maracatu ao jazz, o pianista Amaro Freitas se joga em improvisações vertiginosas e imprime novo fôlego em um gênero dominado pelo conservadorismo.
Levaguiã Terê, de Vitor Araújo
Inspirado na lenda indígena de um pássaro mítico que voa por baixo da terra, no reverso do mundo, Vitor segue com os experimentos iniciados em A/B. Com orquestrações minimalistas, ruídos eletrônicos e marcante percussão afro, é um álbum ambicioso, gradioso e único no País.
Em seu aguardado álbum de estreia, Isadora lança sua voz macia em uma arquitetura musical cheia de espaços vazios: sem percussão, acompanhado só por bandolim, acordeom, violão e baixo acústico. Um disco repleto de delicadezas e um inefável sentimento de nostalgia.
Ganímedes, de Túlio Falcão
Os satélites de Júpiter são o ponto de partida da improvisação de Túlio em dois álbuns - além de Ganímedes, também lançou Io, os primeiros de uma série sobre as 67 luas do planeta), onde experimenta diversas possibilidades sonoras com programas desenvolvidos no software eletrônico Pure Data. Aqui, o som se faz presente como uma entidade enigmática.
Brasil S/A (trilha sonora), de Mateus Alves
Como o filme homônimo de Marcelo Pedroso, composições como Marcha das Máquinas e (regidas por José Renato Acciolly e interpretadas pela Cinemorquestra Pernambuco) têm um clima épico que funciona como uma elegia satírica da política de desenvolvimentismo econômico/industrial e sua concepção de “progresso”.
In The Name Of Father, Of The Son And The Violence, de Inner Demons Rise
A temática de crítica às religiões pode soar datada e repetitiva, mas as cascatas sonoras avassaladoras da IDR encobrem qualquer tom de “denúncia” com um música absolutamente visceral.
Uma lisergia sombria e barulhenta com reminiscências de Black Sabbath a Kyuss e Black Flag.
Filiando-se à linhagem de músico-produtores brasileiros (de Marcos Valle a Kassin), Barro esmera nos mínimos detalhes uma canção pop cosmopolita de apelo radiofônico.
Os festivais no ano do acocho
Os três maiores festivais de música de Pernambuco apresentaram realidades diferentes neste ano. Mesmo com um corte de 50% no patrocínio da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, o Rec-Beat moveu forças e, na garra, fez uma edição com artistas locais, nacionais e gringos.
Ainda que o atual cenário de crise ecônomica seja intensificado no próximo ano, Gutie afirma que o Rec-Beat acontecerá. Mas salienta que o apoio da Prefeitura é fundamental. “Tenho uma reunião na Fundação de Cultura na terça-feira (20)”, diz Gutie. “Conto pelo menos com a manutenção (do valor do patrocínio). A gente não se furta de batalhar para realizar e sempre realiza. Mas tem um limite, não dá para fazer milagre”.
O Abril Pro Rock, que também sofreu redução de patrocínio. E, mais grave, teve uma edição esvaziada, até mesmo na tradional noite do metal. Para o produtor Paulo André, a causa é o cancelamento das duas maiores atrações internacionais: Malevolent Creation (um mês antes do show) e Warrel Dane (que quebrou o ombro apenas alguns dias antes do evento). “Temos público de outras cidades, como João Pessoa, Natal, Maceió, Fortaleza, Salvador. A gente estima que 40% do público do sábado vem de outras cidades. Ficou claro para gente que se não tiver bandas internacionais, não traz esse público de longe”, afirma.
Sobre a previsão para o próximo ano, ele é direto: “A gente já passou por várias crises, altas e baixas do dólar e vamos programar o festival do mesmo jeito”.
Já a Porto Musical – assim como a Mimo no ano passado – não conseguiu escapar. Considerada uma das feiras de música mais importantes do País, o evento cancelou sua edição 2017. “Atravessamos uma troca constante de gestores públicos e a cada ano, uma nova tentativa, um recomeço, novos discursos e pouco progresso nessas parcerias. Desta vez, não será possível viabilizar o evento. Perdemos nosso maior patrocinador, o BNDES, e as respostas dos governos estadual e municipal não vieram a tempo ou não foram suficientes para garantir a realização do Porto Musical”, afirmou a produtora Melina Hickison.
O Coquetel Molotov vive um momento oposto: em meio a crise, o festival se expandiu para Belo Jardim, Belo Horizonte e em janeiro volta a fazer uma edição em Salvador. Em sua cidade natal, teve superlotação de público.
“A crise do Coquetel Molotov aconteceu há uns dois, três anos, quando tínhamos aprovado BH e Salvador mas não conseguimos realizar por questões burocráticas, liberações etc. Focamos muito nas cidades que têm mecenato justamente por conta disso”, explica a produtora Ana Garcia. “Tivemos a sorte de participar da plataforma da Skol Music por ser um festival que foca muito no novo. Esses momentos de crise exigem criatividade, criar novos projetos, como o que fizemos em Belo Jardim com o Instituto Conceicao Moura. Sempre falo que financeiro é 60% e que criatividade é o resto. É muito importante ter uma rede e ser criativo para inovar e envolver o maximo possível de pessoas criativas no festival”.
Sobre os planos para o ano que vem, ela revela: "acho que vamos atender melhor o público. Mas já estamos pensando em um local para fazer um festival, mas não sabemos se será o coquetel ou algo paralelo no primeiro semestre".
Os músicos, por sua vez, se viram com iniciativas independentes entre si. Almério lançará Desempena, seu segundo álbum, em março com apoio do Natura Musical, que também patrocina dois shows. Ele salienta a importância do diálogo entre artistas.
“Está acontecendo um movimento muito importante, capitaneado por Juliano Holanda, de artistas que estão se comunicando, olhando uns pros outros, para a música do interior e fazendo um bate-bola com a capital. Essa é uma das saídas”, aponta ele, citando o Circuito Corre-Campo, que busca levar shows para o interior do Estado – em novembro, Almério e Juliano tocaram em Garanhuns, Pesqueira e Arcoverde.