O baterista Charles Gavin deixou os Titãs em 2010. Desde então focou sua atuação em outros projetos musicais, mas quase sempre longe dos palcos e dos estúdios de gravação. Uma exceção aconteceu Em 2011, quando participou do fugaz supergrupo Panamericana, com Toni Platão (Ojerizah), Dado Villa-Lobos (Legião Urbana) e Dé Palmeira (Barão Vermelho). Há um ano e meio, mais ou menos, passou a acalentar a vontade de tocar, gravar, cair na estrada novamente. Concretizou a vontade, formando uma banda, e tocando um projeto de recriação do repertório dos Secos & Molhados. O resultado, Primavera nos Dentes, já está nas plataformas digitais (pela Deck, com produção de Rafael Ramos).
“Eu precisava de fato voltar para os palcos, tocar bateria. O que é que eu vou fazer? Comecei a refletir. Vou tocar Titãs? Um repertório que ajudei a construir, que de certa forma também é meu. Mas será que vai chegar a algum lugar, as pessoas não vão achar que estou apelando, que estou fazendo cover de mim mesmo?”, as dúvidas foram muitas, confessa Charles Gavin. Ele pensou numa música com que tivesse uma relação especial e influente em sua formação. O nome Secos & Molhados foi o primeiro que lhe veio à cabeça.
“A resposta que veio com o tempo, quando lancei a questão pra mim mesmo, foi muito clara pra mim. A música com que eu tinha uma relação especial, com que poderia fazer alguma coisa, seria a dos Secos & Molhados, uma vértebra da espinha dorsal da música brasileira em minha opinião. Quando o primeiro disco deles saiu eu tinha 12 para 13 anos, nesta época não se levava garotos para show de rock. Não vi ao vivo, mas a música que assisti na televisão teve uma reverberação muito forte. O pessoal ia pro colégio com o disco debaixo do braço, como a gente fazia antes com figurinhas de um álbum”.
Ele elogia a banda como um todo, das performances de Ney Matogrosso, à emblemática persona forjada com maquiagem pesada, e enfatiza as canções: “As canções, cada uma aponta para um lugar. O Vira, praticamente uma canção de criança, fez tanto sucesso com o público infantil, nas famílias, de certa forma protegeu o Secos & molhados daquela aparato repressor da época. Não só da censura, mas de toda sociedade reacionária brasileira daquele tempo”.
Quando ficou claro pra Gavin que era Secos & Molhados que queria tocar, aconteceu um projeto São Paulo com guitarristas brasileiros, com a curadoria do também guitarrista Paulo Rafael, que teve Charles Gavin como mediador: “Eu tenho uma admiração muito grande por Paulo Rafael. Logo que entrei nos Titãs fomos fazer um show de rádio no Mineirinho, em BH. Com Miquinhos Amestrados, Lobão, Titãs, e Alceu Valença. Assisti aquele show de Alceu no palco, era 1985. Fiquei chapado com o show de Alceu Valença, porque era uma música muito brasileira, claro, mas muito pesada. Pra mim o rock brasileiro era aquilo. Quando vi Paulo Rafael tocando, fiquei muito impactado. Os Titãs entrariam depois de Alceu, e eu: caramba a gente vai fazer o que?”, conta Charles Gavin.
BANDA
Se havia um guitarrista que poderia tocar Secos & Molhados com propriedade seria Paulo Rafael ponderou Gavin. “Tivemos o privilégio de contar com Paulo Rafael. É muito prazeroso tocar com Paulo Rafael, porque ele tem um pé em Caruaru e um pé em Londres. Tem certos momentos em que o som tá pesado pra caramba, e eu dizia vamos fazer alguma coisa Ave Sangria. Não copiar, mas um coisa que remeta ao Ave Sangria, precisa nem dizer nada sobre a banda, foi contemporânea do Secos & Molhados”, conta Gavin.
“Quem poderia cantar Ney Matogrosso com propriedade? Encontro um cara no Rio de Janeiro, irmão de Fernanda Abreu, expliquei o projeto, e perguntei ele indicou Duda Brack. Nos encontramos, eu Duda Brack e Paulo Rafael, e ele trouxe Pedro Coelho, um grande baixista. Depois a Duda trouxe Felipe Ventura, que é da Baleia, uma banda bem bacana”.
Mexer na música dos Sexos & Molhados era como refazer uma obra prima de um grande artista plástico. Charles Gavin encarou o desafio: “Todo mundo acha que música dos Novos Baianos, dos Secos & Molhados, dos Mutantes, é intocável, ninguém pode mexer. Mas eu não acho. Uma música quando é lançada, pertence, claro, aos seus autores mas ela pertence ao mundo”. Começaram a discutir que tipo de adaptação fariam. Claro estava que não poderiam se guiar pelos arranjos originais:
“Vamos recriar isso. Claro, iria demorar muito mais. Passamos um ano e meio ensaiando, voltando, um processo muito artesanal. Foi uma recriação coletiva com participação de todo mundo. Os Titãs trabalhavam deste jeito, democraticamente. Assim foi feito o processo dessas músicas que estão no disco, e das outras que vão estar no show. A gente se guiou naturalmente pelas nossas opções artísticas, não nos passou pela cabeça que as pessoas vão detestar. Se você for pensar nisso acaba perdendo a direção. Tem que se preocupar com o que você acha bom”, comenta.
Depois da gravação pronta, eles mandaram cópias para Gerson Conrad, Ney Matogrosso, Paulo Mendonça (coautor de Sangue latino). Não conseguiu-se chegar ao recluso João Ricardo: “Mas ele de ter ouvido agora que está disponível na internet”, diz Gavin. O primeiro que contatou foi Ney Matogrosso, quando o anúncio da participação do cantor e do Nação Zumbi no Rock in Rio. “Fiquei preocupado. Liguei pro Ney pra contar a história, temos uma relação próxima¸ ele foi muito receptivo. Disse peguem esta musica e façam a sua leitura”.
DISCO
Inevitavelmente, seja com uma banda cover, ou com recriações, as canções dos Secos & Molhados remetem imediatamente às originais. É preciso escutar Primavera nos Dentes sem esse viés. É difícil nos principais hits do Secos & Molhados, Sangue Latino e o Vira, principalmente. As versões aqui se distanciam do original, pelos arranjos, pela voz de Duda Brack. O Vira, por exemplo é blindado por bastante percussão.
Suave no original, Fala ganhou um arranjo pesado, que lembra Dear Prudence, dos Beatles. Já as menos conhecidas, feito o Doce e o Amargo, por exemplo, com arranjos de cordas, e percussão forte, soa como uma canção nova. Acontece isto também com as pouco lembradas O Hierofante (em cima de um poema de Oswald de Andrade), e Tercer Mundo. Não por acaso, todas do segundo álbum dos Secos & Molhados, um disco que tocou pouco quando foi lançado (em 1974).
Primavera nos Dentes, este coletivo capitaneado por Charles é, até agora, a melhor tentativa de incursão pela
música dos Secos & Molhados, esfinge da MPB que parece dizer a todos que se aproximam de sua obra: “Recriem-me ou te devoro”. Charles Gavin, Duda Brack, Paulo Rafael, Felipe Pacheco, e Pedro Coelho não foram devorados.