Disco

Lula Queiroga num sonho em que cabe até a realidade

Disco será lançado amanhã nas plataformas digitais

JOSÉ TELES
Cadastrado por
JOSÉ TELES
Publicado em 06/09/2017 às 9:10
foto: divulgação
Disco será lançado amanhã nas plataformas digitais - FOTO: foto: divulgação
Leitura:

“No sonho cabe tudo”, diz Lula Queiroga ao explicar o conceito do Aumenta o Sonho (Luni), quinto álbum solo e o primeiro desde Todo Dia É o Fim do Mundo, de seis anos atrás. O disco estará disponível nas plataformas digitais amanhã (terá também lançamento em CD e vinil). Naturalmente ansioso, ele fez o disco aos poucos, de forma quase artesanal, abrindo um espaço na agenda movimentada para escutar cada música gravada, mexendo aqui e ali:

 “Neste tempo não parei de fazer música para O Rappa, Paralamas, Mart’Nália, Roberta Sá, participei de discos, de shows. Porém as músicas desse álbum são todas novas, feitas de dois anos pra cá, com a exceção de Fere Rente”, diz o músico, citando o subtítulo de A Balada do Cachorro Louco (com Lenine e Chico Neves), lançada, duas décadas atrás, por Lenine, no CD O Dia em que Faremos Contato.

 Embora fuja ao conceito onírico que permeia o novo trabalho de Lula Queiroga, a canção encaixou-se no roteiro: “Quis gravar porque esta música foi muito importante pra mim. Está sempre nos meus shows. Tenho duas versões de arranjos para ela. Pensei em fazer com Spok, com uma barreira de sax, usei outro arranjo, o primeiro que Lulu Oliveira começou a puxar. A música parece ter um caráter meio agressivo, mas não é, é também um sonho, coube no conceito. Tem momentos em que você quer dormir mais, está gostado do sonho, e quer que o sonho continue. É o sonho também no sentido de desejar ir mais alto, subir uma escada, um degrau, é um sonho de realizar um desejo. Noite Severina tem uma abertura de uma espanhola falando sobre as pálpebras se mexendo durante o sonho. Este disco tem esse clima vaporoso, onírico”.

 Lula Queiroga dialoga com música e texto desde a adolescência. Já fazia música quando passou a escrever, aos 18 anos, para o programa de Chico Anysio na TV Globo. É compositor de canções, autor de melodia e letra, embora abra temporada de parceria cada vez que adentra estúdio para um novo disco: “Minha mãe era cantora, meu pai era compositor, me interessei pelas duas coisas, música e texto. Mas acho que a coisa mais importante para se fazer música legal é ouvir música, criar referências, sou fã de um monte de gente, eu ouço de tudo”, diz Lula Queiroga, garantindo que o que vem ele traça, mesmo quando nem é música que lhe agrade. Quando agrada fica. Em Rio que Vai e Volta, por exemplo, a referência da percussão vem do Atoms for Peace, projeto paralelo de Thom Yorke, do Radiohead, mais precisamente, da zabumba do brasileiro Mauro Refosco.

 SEGUE O SONHO

 Numa época em época em que a música popular navega em águas turvas e rasas, Lula Queiroga acredita que há muita gente procurando ir além do entretenimento puro e simples. Comparações à parte, assim como Ulisses, o complexo romance de James Joyce, tem toda ação transcorrendo num único dia, as onze canções deste trabalho devem ser entendidas como as diversa fases de um sonho, da imersão, na faixa título, ao despertar, que começa na citada Rio que Vai e Volta. Romance e cibernética se entrelaçam: “Duna é o sonho total, um mergulho nele até a saída. Tem esta história do cara que foi feliz um único dia na vida, ele tem até uma foto pra provar. Ele vai atrás da duna, que muda sempre de lugar, é a linha do tempo que escorrendo pela ampulheta”.

 Neste sonho há lugar para o pesadelo, # Xoperrengue, um dançante merengue, com letra que admite várias leituras. Pode ser um encosto baixando num cavalo num terreiro, ou alguém rompendo o silêncio com um esporro catártico: “Eu não sou seu camarada/ nunca serei conivente/ não sou seu sócio em nada/ não sou amante ou parente/ eu desconheço seu rosto/ mas reconheço a serpente/ quando o chocalho do rabo/ chacoalha na minha frente”. Lula confessa que ficou tentado a finalmente encarar a leitura de A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud, mas desistiu e preferiu trabalhar seu próprio sonho, com letras recheadas de brincadeiras, citações, e influências.

 “Nada lá Fora tinha feito muito tempo atrás, ganhou letra o ano passado, é tem a ver com Spinoza. Não há nada lá fora, ou seja tudo está dentro de você. Sei que as pessoas querem as coisa já mastigadas, tudo pronto, acho que tenho que fazer uma resistência a isso, seria muito fácil, fazer jingle”. Em Futurologia o sonho aprofunda-se ainda mais: “A futilosofia reinará/ sobre o vazio humano absoluto/ escrevendo no vácuo na página zero/ não vai ter festa, nem vai ter luto”:

 “Futilosofia, é o raso e o profundo, os dois juntos. É a história de um sonhador que tá lá lombrado lucubrando coisas. Acaba criando um movimento, lançado um manifesto aí chega um poeta e diz vai dormir, teu mal é sono. É a verdade dele naquela hora. No meio do sonho, chega o poeta pra quebrar o encanto, e quebra o encanto dizendo para o sonhador: ‘Vai dormir, que teu mal é sono’”

DISCO

Sem ter uma banda formada, Lula costuma gravar com os mesmos músicos, os irmãos Tostão (bateria) e “Lucky” Luciano Queiroga (baixo), o sobrinho guitarrista Yuri Queiroga, o percussionista Lucas dos Prazeres, entre outros. Com eles criou um sonoridade própria, uma marca. Parede de som, onde os instrumentos formam uma massa coesa. Aqui ali instrumentos se destacam, mas nunca por muito tempo. Mais uma vez um projeto tocado quase inteiramente pela Queirogada. A começar da capa, uma foto do sobrinho Bento (filho de Ylana Queiroga), entrando no sonho com os dois pés em destaque.
“A vida é só um sopro da alma/ é o tempo entre o raio e o trovão”, versos finais de Aumenta o Sonho, envolta em clima de sono leve, aberta com teclado, a letra tem versos diretos, claros. A faixa seguinte, Amor Roxo, uma balada, é a segunda fase do sono, aquela em que o corpo começa a relaxar, as ondas cerebrais tornam-se mais lenta.

Tardinha, primeiro single do álbum, provável hit do disco, caso as rádios toquem ou caia numa trilha de novela global. Traz leves referências de Onde Andarás? do álbum solo tropicalista de Caetano Veloso (parceria com Ferreira Gullar), mas refletindo um mundo muito mais complexo do que a bucólica Zona Sul carioca de meio século atrás: “Enquanto o mar bate azul, em Ipanema/ em que bar, em que cinema te esqueces de mim?”, cantava o baiano. Nos século 21, a pergunta é a mesma, a paisagem mudou
muito: “O sol derrete o asfalto por onde passas/ nesse crepúsculo aflito/ em que janela de van?/ em que escada rolante ?/ estarás subindo, nesse exato instante/ contente, sem mim?”.


Discos de Lula Queiroga se interligam, amor não rima com computador, que ele não é de obviedades, mas se fazem presentes em suas letras, um futuro que já está acontecendo, como enfatiza Futilosofia: “A nova placa-mãe do robô/ o cérebro que sonha dentro do bebê/ a nerd que hackeia o terminal/ e a bíblia da velhinha que nem sabe ler”. Mas no futuro a dor de cotovelo persiste, em os trocadilhos nos versos podem ser mal-interpretados (vide a recente polêmica unilateral que torno de uma canção de Chico Buarque: “Amor roxo/ amor de violeta e hematoma/ já nem merece ser chamado amor/ não passa de um sentimento bruto/ em
estado de coma”.

Porém o futuro em Lula Queiroga é feito a ficção científica de Jean-Luc Godard, em Alphaville, em preto & branco, com os personagens vestidos com roupas dos anos 50. Depois de Duna (parceria com Lucky Luciano), um rock, com bateria que evoca levadas de ritmos regionais, programações, uma das mais oníricas do disco, irrompe #XoPerrengue, merengue enviesado para um carimbó, com sotaque paraense, roupagem contemporânea, com efeitos na voz, mas com um corinho convencional. Mais Alphaville, impossível.

Um das canções de destaque em O Dia em que Faremos Contato, de Lenine, A Balada do Cachorro Louco (Fere Rente) volta aqui como rock and roll, sem muita firula, marcado pela pulsação funkeada de Lucky Luciano. Estranho esta música ter recebido tão poucas regravações. O conceito do álbum, como já enfatizado, é um sonho e suas fases, do adormecer ao movimento rápido dos olhos, ao despertar, neste caso na faixa penúltima faixa: “acordar para um mundo novo/ que eu mal conheço/ deixe estar sem aviso ou endereço/ o bem virá/ e você virará Rio-que-Vai-e-Volta”, canta na música mais pop rock do disco, embora tenha uma levada de xaxado, com direito a zabumba e triângulo e solo mais longo da guitarra de Yuri Queiroga, onde se sobressai a melodia de um refrão que fica quando a música vai embora 

O acordar tem sons de cordas, uma valsinha, com arranjo cheio de minúcias sonoras. Coincidência, com certeza, mas é curioso que, 50 anos depois do Sgt Pepper’s do Beatles, ainda se façam discos com conceitos e sem concessões ao circunstancial que tomou conta da música popular

Escute o disco aqui:

Últimas notícias