Quinta-feira, às 19h, no Teatro Barreto Junior, um dos músicos com uma das histórias, e obras, mais ricas do país, o maestro Clóvis Pereira, receberá uma homenagem pelos 70 anos de carreira. Quem prestará a homenagem será o Quinteto Pernambucano, que faz sua estreia, com o espetáculo Do Clássico ao Armorial. “Quem deveria estar fazendo esta homenagem seria a Sinfônica do Recife, como fizeram na Paraíba, onde ele é maestro residente. Ele nunca foi o homenageado, por exemplo, do Carnaval da cidade”, a crítica é feita pelo violinista Clóvis Pereira Filho, o caçula do maestro, criador do Quinteto Pernambucano. Clóvis Pereira
pertenceu aos quadros da Orquestra Sinfônica do Recife durante 42 anos, foi um dos fundadores do Movimento Armorial, nos anos 70, com sua própria orquestra tocou 35 Carnavais, é um dos mais importantes compositores do frevo, gravou álbuns solo pela Rozenblit, onde também foi arranjador. Sua carreira abrange toda as áreas da música, do popular ao erudito.
A vida do maestro já tem uma fornida biografia, Clóvis Pereira – No Reino da Pedra Verde (CEPE), assinada pelo jornalista Carlos Eduardo Amaral, mas a cada conversa com ele vão surgindo episódios que, de repente, lhe vêm à memória. Em 1951, a Big Band de Tommy Dorsey veio fazer uma temporada no Recife, contratada pela Rádio Jornal do Commercio (atual Rádio Jornal), e o maestro Clóvis Pereira participou com um sexteto dos concertos da orquestra americana:
“Aconteceu um incidente nessa temporada de Tommy Dorsey que os jornais não deram na época. Eles fizeram um show no Caxangá Golf Country Club, eu com o sexteto tocávamos no intervalo, que durava vinte minutos. Na fila da frente estava a alta sociedade do Recife, o doutor F. Pessoa de Queiroz estava lá, com a família. De repente, um bêbado chega e grita uma ofensa
contra ele. Paulo Pessoa de Queiroz, o filho, saltou em cima do bêbado, começou a confusão. Paramos de tocar, nisso vem um músico de Tommy Dorsey e grita: play, play. A gente tocou, mas não abafou a confusão. Um trombonista deles começou a tocar, depois veio um saxofonista. O salão estava muito cheio, a briga acabou e o pessoal lá atrás não soube”.
ARMORIAL
Autor de alguns dos mais conhecidos temas do movimento armorial, incluindo A Grande Missa Nordestina, Clóvis Pereira orgulha-se de ter participado do Armorial, mas tem sua própria teoria sobre ele, e destaca a influência decisiva do maestro Guerra- Peixe: “Antes de Ariano, teve Guerra-Peixe, que botou na cabeça da gente que, em vez de imitar a musica francesa, americana, pesquisássemos as músicas do folclore nordestino. O terno de pífanos de Caruaru, todo mundo achava bonito, mas quem primeiro botou no fui eu, duas flautas, um tarol, um bombo, dei o nome Tanguinho do Vicente, em homenagem a um músico de Caruaru, que tinha uma banda de pífano”. Quase duas décadas mais tarde, o maestro incluiria no repertório armorial, gravada pela Orquestra Armorial, a composição Terno de Pífanos. A propósito, o maestro Guerra-Peixe veio para o Recife trabalhar na Rádio Jornal do Commercio e foi professor de mais dois futuros armorialistas, Capiba e Jarbas Maciel.
O maestro Clovis Pereira tinha livre trânsito nos mais diversos nichos musicais pernambucanos. Chegou no Recife com 15 anos, tocando apenas gaita, e ganhando emprego nas duas rádios da cidade, a Rádio Clube de Pernambuco e a Jornal do Commercio, recebendo o mesmo salário que o pai dele em Caruaru recebia. Foi o que lhe fez decidir enveredar pela carreira musical. Com 21 anos já regia a Orquestra Paraguary: “Era anunciado como o mais jovem maestro do Brasil. A maioria dos músicos da Paraguary era mais velha do que eu. A orquestra tinha 18 músicos. Vinha muito artista do Sul, não tinha tempo de ensaiar. Eu chegava pra eles dizia que me dissesse o que iam cantar, como iam, e deixassem comigo. A orquestra pegou fama no Sul”, diz o maestro, que regia talentos como o bandolinista Luperce Miranda, o acordeonista Sivuca, e o pandeirista Jackson do Pandeiro.
Foram 70 anos de muitos episódios incríveis. Quando a TV Jornal do Commercio completou um ano, emissoras de todo o País mandaram contratados seus para a festa de aniversário. De Porto Alegre veio a adolescente Elis Regina, devidamente acompanhada do pai: “Quando eu ia saindo da TV com minha mulher, Elis estava com o pai na frente do prédio. Veio perguntar a gente se sabíamos onde aconteceria a festa. Disse que a gente ia pra lá, e demos carona pros dois”. Uns três anos mais tarde, Elis, já morando no Rio, estava no Recife, numa reunião na casa de um ricaço, na avenida Boa Viagem: “Eu dormia e ele me ligou. Queria me contratar pra tocar piano pra Elis. Na festa tinha também um cantor de bolero, famoso, e um violonista. Mas
ela só cantava com um pianista. Eu fui lá, e toquei pra ela cantar”.
Aos 85 anos, ótima memória, Clóvis Pereira lembra, por exemplo, o nome dos cinco músicos com quem tocou no atribulado baile com a Big Band de Tommy Dorsey há 66 anos, ou pequenos e importantes detalhes, como o da guitarra elétrica na Orquestra Paraguary em 1950 ou do arranjo que fez para as primeiras gravações de Jackson do Pandeiro, no estúdio da Radio Jornal do Commercio, há 62 anos. Mas poucas das suas histórias são tão surpreendentes quanto a que teve o ex-presidente João Figueiredo como personagem. Ele foi contratado para arranjar e orquestrar duas composições do general presidente que, de repente,
resolveu expor um insuspeito compositor que havia nele:
“O presidente do Ecad acertou com José Rozenblit e fui convidado para trabalhar com as duas músicas de Figueiredo. Que foram gravadas, mas o disco não saiu. Uma era um toque de clarim, outra uma canção meio marcial, com letras. O disco não foi lançado
porque aconteceu algum problema em Brasília, talvez não tenham gostado porque foi gravada por músicos
daqui e não de lá, não sei”, diz o maestro. Quinta feira, na homenagem que receberá do Quinteto Pernambucano, o maestro será entrevistado no intervalo do concerto pelo seu biógrafo, Carlos Eduardo Amaral e, certamente, contará muito mais histórias de sua riquíssima trajetória musical.
SONHO REALIZADO
Quando voltou a morar no Brasil depois de 15 anos tocando na Alemanha e Noruega, o violinista Clóvis Pereira Filho alimentava a ideia de criar um quinteto de cordas. O grupo finalmente foi formado, ensaiado e estreará quinta-feira, no Teatro Barreto Junior, no Pina: “Não fiz antes por questões de logística. Em 2002, estava aquela confusão, eleições. Passei três ou quatro meses no Recife, mas não consegui me encontrar aqui. Não tinha perspectiva de absolutamente nada. A gente estava vivendo uma entressafra. Nos anos 1980 nossa cena era muito mais plural. Hoje em dia tem movimentos localizados. E música erudita foi que perdeu, porque era a que tinha mais dificuldade de aparecer, de se financiar. Então recebi um convite de ir para o Rio
de Janeiro. Aceitei porque aqui estava difícil”, conta Clóvis Filho.
Ele foi contratado como primeiro solista da Orquestra Sinfônica Brasileira, com a qual tocou durante 15 anos. Mas diz que acabou se cansando do Rio, por vários motivos, desde a desorganização na orquestra que, com a crise, perdeu patrocinadores, depois com a violência da capital fluminense, vivida e vista pela TV o tempo inteiro: “Vim pra cá, entrei no Criança Cidadã para ser professor, em seguida fui convidado para ser spalla da Orquestra Sinfônica Municipal de João Pessoa. Este ano de 2017, tomei uma decisão radical de dar início a este projeto. Não foi fácil, porque produzir e criar ao mesmo tempo é complicado. Requer um investimento do seu tempo muito grande. Por outro lado, tinha até um pouco de medo de fazer isso. Até então eu era sempre o convidado, e desta vez o projeto é meu, e estou convidando as pessoas a participar de uma ideia minha”.
Ele formou um tipo de conjunto musical que não há no Recife hoje. Um quinteto com formação clássica, com dois violinos, viola, violoncelo, e contrabaixo: “Temos como convidado um percussionista que também é baterista, Enock, da sinfônica. Dá para interpretar o clássico ou o armorial, ou seja, trazer os músicos eruditos para tocarem músicas populares com uma concepção também erudita”, diz Clovis, ressaltando que o Pernambuco no nome tem a ver com a música e com o fato de todos os integrantes serem pernambucanos. A exceção, nos autores que tocam, é o italiano Antonio Vivaldi (1678/1741): “A ideia de colocar Vivaldi é porque veio dele a base da concepção técnica do armorial, a concepção barroca. É o parâmetro de largada, como Luís Álvares (1719/1789), compositor do barroco pernambucano. Os dois são tocados na primeira parte do concerto. Na segunda tocamos Capiba e Clóvis Pereira, a segunda parte do concerto vai ser toda dedicada a ele”.
Segundo Clóvis Pereira Filho, o objetivo do quinteto é também a ideia de criar um público para a música erudita: “ Pretendo com ele preencher uma lacuna. Nesta formação você tem a harmonia de uma orquestra. Poderia chamar até de Orquestra de Bolso Pernambucana. Eu até queria fazer uma orquestra de câmara, mas para isso teria que ter bala na agulha. Eu não tenho. Mas o Quinteto Pernambuco é um sonho realizado, e quero que permaneça”. O Quinteto Pernambuco é formado também por Susan Moura (violino), João Pimenta (contrabaixo), Raquel Paz(viola), Fernando Trigueiro (violoncelo).
MUITAS HISTÓRIAS