Zé Rodrix encontrava-se num restaurante, em São Paulo, no dia 18 de janeiro de 1982, quando foi anunciada a morte de Elis Regina. Escutou alguém comentar, mas considerou uma brincadeira de mau gosto, estivera com ela na noite anterior. Quando entrou no carro, ligou o rádio e tocava Casa no Campo, composição dele e Tavito, um dos grandes sucessos de Elis. Mudou de estação, tocava Elis. Não tinha mais dúvida: a amiga morrera.
“Ele foi ao velório, no Teatro Bandeirantes, em estado de choque. Se recusou a dar entrevistas às televisões, se esgueirando entre amigos. Depois confessou que era a primeira vez que conseguia olhar para uma pessoa morta. Estava flutuando. Chegou a dizer a quem estava por perto que não sentia os pés no chão... Como consequência deste impacto, Zé Rodrix tomou a decisão de nunca mais trabalhar com música, compor ou subir em um palco para cantar. Abalado emocionalmente, decidira desistir”
O trecho em aspas é do livro O Fabuloso Zé Rodrix, do escritor e jornalista paranaense Toninho Vaz (autor de elogiadas biografias de Torquato Neto e Paulo Leminski), lançado pela editora brasiliense Olhares. Certamente leitores com menos de 30 anos sabem pouco da sua importância na música brasileira, exatamente porque ele cumpriu o que se prometeu quando Elis Regina morreu. Ou quase.
Voltou aos palcos vinte anos depois. Abandonou a carreira de cantor e autor de música popular para se dedicar à publicidade e a eventuais produções. Criou jingles famosos, para grandes empresas, um dos mais marcantes, para a Chevrolet (“Seu coração bate mais forte dentro de um Chevrolet”). Jingles, no entanto, nascem com prazo de validade, são logo relegados ao esquecimento. Já a música que Zé Rodrix continua nas programações de FMs pelo país afora.
A importância de Zé Rodrix não está apenas no fato de sua assinatura estar em alguns clássicos da música popular, mas por permear momentos cruciais da MPB. Da era dos festivais até a fase alternativa dos anos 70 e do rock do anos 80. Esta biografia de Toninho Vaz é também uma versão da história da música popular brasileira.
E o autor conduz a narrativa com talento, já que precisa preencher o espaço de 1982 a 1992, as duas décadas, digamos, sabáticas, de Zé Rodrix, que esteve fora da mídia, cuidando das filhas (de vários casamentos) e fora da vida artística formal. “Este livro nasceu do sobressalto provocado por uma conversa com o meu amigo Guarabyra, parceiro musical de Zé Rodrix, com quem – eu sabia – ele tivera algumas divergências. Eu conhecia o Sá e o Guarabyra (que os amigos chamam de Gut) superficialmente, mas o meu encontro com Rodrix havia sido ainda mais superficial – uma entrevista em sua casa, dois anos antes de sua morte, ou seja, em 2007. Fui entrevistá-lo para o Solar da Fossa, livro meu que seria publicado dois anos depois”, esclarece Toninho Vaz.
Quando escolhia um personagem para uma próxima biografia, ele pensou em Zé Rodrix, e voltou a falar com Guarabyra. Perguntou como era Rodrix, a resposta: “O Zé era um grande mentiroso, o maior que conheci”. A afirmação não foi dita em sentido negativo. Rodrix estava mais para mitômano. Ou seja, reescrevia a realidade. O músico Tavito, parceiro em Casa no Campo, reforça a tese de Zé Rodrix de tentar mudar o curso da história: “Aconteceu durante uma conversa informal entre eu, o Zé e a minha primeira mulher, a Aninha, que lamentava a sorte de um tio que era mudo. O Zé, rapidamente, afirmou com ênfase que tinha cinco tios mudos. Cinco. A Aninha reagiu na hora: ‘Desculpe, Zé, mas ninguém tem cinco tios mudos’”. Obviamente Zé Rodrix não era uma exceção.
O autor de O Fabuloso Zé Rodrix traça um roteiro diferente para contar a vida do seu personagem: divide-o em três mortes. A primeira, acontecida com o falecimento de Elis Regina, a segunda com mais uma morte, a do publicitário, seu sócio na agência e estúdio, Tico Terpins (também do grupo Joelho de Porco), e a terceira, claro, a sua própria morte, com 61 anos e meio. Da mesma forma como aconteceu com Elis, a perda de Tico Terpins, que considerava o único verdadeiro amigo que teve, o abalou. Terpins morreu de infarto.
Mais uma vez, ele entrou em depressão, recolheu-se em casa, de onde só saiu por insistência da última esposa, de com quem manteve seu mais longo casamento. Antes da trinca de mortes, era José Rodrigues Trindade, nascido numa família classe média, na Zona Sul carioca, que teve infância e adolescência comuns, até que as artes cênicas mudaram o curso de sua vida. Fez João Grilo no O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, numa montagem de 1964.
Segundo o artista, enquanto estudava no Colégio de Aplicação, cursou música no Conservatório Musical do Rio de Janeiro e continuou o aprendizado na Escola Nacional de Música. Ainda estudou acordeom com George Brass, que foi professor de entre outros, Eumir Deodato, Edu Lobo e Marcos Valle. Poderia ter seguido a carreira de ator, mas em 1965, a música popular era o ramo das artes que mais atraía a juventude tanto para a MPB, quanto para o rock, na época chamado de iê-iê-iê
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Zé Rodrix fez amizade com um rapaz de sua idade, que gostava de livros e cinema, chamado Ronaldo Lindenberg Von Schilgen Cintra Nogueira, que também acabou na música, no iê-iê-iê, com o nome de Ronnie Von. No Colégio de Aplicação tornou-se amigo de Maurício Mendonça, David Tygel e Ricardo Sá. Com os três formariam um grupo vocal batizado de Momento Quatro. Dois anos depois, o Momento Quatro estaria no palco do Teatro Paramount, em São Paulo, onde aconteceu o III Festival da MPB, da TV Record.
Com Edu Lobo, Marilia Medalha e o Quarteto Novo, o Momento Quatro levaria Ponteio (Edu Lobo/Capinam) ao primeiro lugar no mais lendário dos festivais dos anos 60. Ricardo Sá, ou melhor, Ricardo Villas, foi preso, em 1968, como integrante de um grupo que lutava contra a ditadura (fez parte da leva de presos políticos trocado pelo embaixador Burke Elbrick, sequestrado por guerrilheiros). O Momento Quatro acabou-se.
Anos mais tarde, Maurício Mendonça, ou Maurício Maestro, e David Tygel formariam o Boca Livre. Zé Rodrix, com Guarabyra, e Luís Carlos, criaram o Crosby, Stills & Nash brasileiro, o trio Sá, Rodrix e Guarabyra. Viveu intensamente a fase em que os brasileiros levavam vida dupla. Uma alinhada ao regime militar, outra trafegando na contramão. Ou militando nos grupos clandestinos, ou no desbunde.
Inevitavelmente, ambos se cruzavam o tempo inteiro. Rodrix namorava Hildegard Angel, filha de Zuzu Angel, célebre estilista e irmã de Stuart Angel, torturado até a morte nas dependências do Galeão. Casa no Campo, sucesso do trio SR & G, agradou a Elis que a tornou um clássico do seu repertório. Antes, porém, Zé Rodrix integrou o Som Imaginário, que engatou uma parceria com Milton Nascimento que, naquela época, desempenhou um papel crucial na MPB, sendo uma das estrelas da MPB dos anos 60 que permaneceu no país. Encarou de peito aberto a truculência da ditadura com ajuda do grupo.
Um supergrupo: Tavito (violão), Wagner Tiso (piano) Robertinho Silva (bateria), Luiz Alves (baixo), Laudir de Oliveira (percussão) e Zé Rodrix (vocais e teclado). Entraram depois Fredera (guitarra) e Naná Vasconcelos, em lugar de Laudir de Oliveira. Toninho Vaz traça com presteza o cenário dos anos 70, ao mesmo tempo em que corre atrás do hiperativo protagonista da história, de inúmeras parcerias, muitos casamentos.
A primeira mulher, Lizzie Bravo (conhecida como a brasileira que gravou com os Beatles), é a “esperança de óculos” citada nos versos de Casa no Campo. Depois vieram a atriz Norma Blum e Edyr (que seria uma da Frenéticas). Terminou com Julia Rodrix, um casamento longo, 23 anos. Teve filhos com toda as mulheres, mais um fora do casamento. Como se não bastasse, na época em que esteve fora dos palcos, Zé Rodrix ingressou na maçonaria, que lhe inspirou a escrever a Trilogia do Templo. Tocou na Joelho de Porco, teve uma carreira solo bem sucedida, compôs trilhas, produziu discos.
Foram muitas as vidas de Zé Rodrix, bem mais do que as suas três mortes, na última delas, em 22 de maio de 2009, começou a passar mal enquanto ia, de carro, com a mulher para uma agência de viagem