Nos 14 anos em que comandou, no Marco Zero, a abertura do Carnaval do Recife, como maestro de várias nações de maracatu, o percussionista Naná Vasconcelos manteve um ritual. Nas quintas-feiras, da semana pré, oferecia um jantar em sua casa, no Rosarinho, aos artistas que convidava para a cerimônia. Ney Matogrosso, Marcelo D2, Milton Nascimento, a senegalesa Angelique Kidjo, a cabo-verdiana Lura, foram alguns dos que desfrutaram da sua hospitalidade.
Ironicamente, a quinta-feira da semana pré passará a ser o dia em que as nações de maracatu irão se apresentar no Marco Zero, a partir do Carnaval de 2018. A prefeitura decidiu que a abertura oficial da folia, na sexta-feira, terá outros ritmos. Os maracatuzeiros, segundo Fábio Sotero, da Associação dos Maracatus Nação de Pernambuco (AMNPE), já sabiam, desde o ano passado, que dificilmente permaneceriam desfilando na sexta-feira. Nas reuniões com os gestores de cultura da prefeitura, foi dito, explicitamente, que depois da homenagem ao percussionista (falecido em março de 2016) estava fechado o ciclo dos maracatus de Naná.
Patrícia Vasconcelos que, em 2017, veio de Nova York, onde mora com a filha Luz Morena, especialmente para participar da abertura do Carnaval e da homenagem póstuma ao marido, distribuiu ontem uma nota sobre a alteração na programação, uma “desconstrução” conforme a definiu: “...A história que foi escrita por meu Amado Naná, nada nem ninguém irá apagar, inclusive está indo para livros didáticos o que poucos sabem ou simplesmente não alcançam. Lamento pelos Mestres das Nações, Lamento! Pelos Batuqueiros que com os seus Baques deram vida ao espetáculo, Lamento! Pelo palco que ficará vazio de Emoção Verdadeira, sem pretensão! Entrega total, todos preparados para a sexta-feira mágica! Magia que encantou, magia que fez Naná flutuar no palco de tão leve que essa música o deixava...”
Da mesma forma como optaram pela quinta-feira, recusando-se a realizar o encontro no Sábado de Zé Pereira, os mestres pretendem continuar sendo uma atração mesmo fora da abertura oficial do Carnaval, diz o presidente da associação dos maracatus: “Acredito que a gente fazendo um zumzum a galera vai entender que a ideia será como uma abertura antecipada. Queremos fazer uma apresentação espetacular para chamar atenção. Tudo bem, não vai ter transmissão de TV, é uma grande perda de visibilidade, mas os mestres de batuque já estão se organizando. Vão fazer um preparativo neste sábado, para começar os ensaios dia 9, no intuito de dar o melhor.”
CONVIDADOS
Com as facilidades que seu prestígio internacional angariava, Naná Vasconcelos, a cada ano, trazia artistas dos mais diversos nichos da música popular, num bloco conceitual de abertura. Segundo Fábio Sotero, a apresentação dos maracatus também terá convidados: “Nisso será como foi até o ano passado. A gente vai ter nomes para os ensaios, depois deles tem show, e para o dia da apresentação. Serão convidados da AMNPE, Estamos ainda fechando a lista”.
Até Naná Vasconcelos idealizar o encontro 16 anos atrás, as nações de maracatus não tocavam juntas, embora já não houvesse mais confrontos entre elas. Segundo Sotero, não há perigo de um retrocesso neste caso: “Pelo contrário acho que com esta mudança a união entre as nações até ficou mais forte. O papel que era feito por Naná está dividido entre os mestres de batuque”.
PASSADO
Apesar dos pesares, o maracatu de baque virado já esteve em situações piores. Só o apego à tradição que herdaram dos antepassados fez com que os maracatuzeiros insistissem. Há várias décadas não precisam mais pedir licença às autoridades para desfilar. “Tendo obtido licença da polícia para exibir-se durante os três dias de carnaval, o Oriente Pequeno julgou-se, talvez por ignorância, com o direito de percorrer, desde ontem, as ruas da cidade. Encontrado, às 10h da noite, na Rua das Laranjeiras, o doutor delegado do 1º distrito intimou o maracatu para que apresentasse a licença respectiva, e como esta estivesse limitada ao período carnavalesco, convidou-o a dispersar-se, no que foi prontamente atendido, sem o emprego de qualquer recurso coercitivo”, diz reportagem no Jornal do Recife, edição de 12 de janeiro de 1901.
Tempos duros os de 1901, mas foi imensamente piores no passado, Em 16 de fevereiro de 1877, em pleno Carnaval, o jornal A Província publicava um editorial contra a prática do maracatu: “...O maracatu é uma coisa infame, estúpida e triste, pois o povo (se é o povo, senão uma horda de escravos vadios, que faz o maracatu) não pode divertir-se pelo Carnaval de uma forma menos estupidamente infame e triste, e degradante, e incômoda? Pois estamos ainda em estado de consentir que o maracatu continue a servir de termômetro à nossa civilização, aos nossos costumes? Civilizado, um povo que tolera o maracatu? Isto não.” Diante disto, muita gente deve se perguntar, o que é uma simples mudança no calendário? Para as nações de maracatu, a mudança fez muita diferença