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Elza Soares roqueira, sem pretexto e fora do texto

Disco é feminista, mas passeia por outras temáticas

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 19/05/2018 às 10:18
Foto: Daryan Dornelles/Divulgação
Disco é feminista, mas passeia por outras temáticas - FOTO: Foto: Daryan Dornelles/Divulgação
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Há um abismo imenso entre Carioca da Gema – Elza ao vivo (Luna), álbum que Elza Soares, então amargando um longo ostracismo, lançou em 1999. Ela passou quase dez anos sem lançar disco (entre 1988, e 1997). A imagem que se tinha dela era ainda a da sambista do início dos anos 1960. E carioca da gema apenas reforçava o estereótipo. A cantora se reprocessou, a partir de Do Cóccix até o Pescoço, de 2002 (Maianga Discos), em que se aproximou de uma nova geração de criadores da MPB, chamou atenção a interpretação de A Carne (Seu Jorge/Marcelo Yuka/Ulisses Cappeletti), em que ela bradava: “A carne mais barata do mercado/ é a carne negra”.

Elza Soares não mudava apenas o estilo musical, mas também a maneira de cantar. As firulas no fraseado apropriado ao samba, deram lugar a um canto direto e irado. A voz rouca, em tom de denúncia, revigora Haiti, de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ela foi apurando o estilo novo até chegar a ao elogiadíssimo Mulher do Fim do Mundo (2015, Circus). Deus é Mulher (Deckdisc) lançado oficialmente ontem, é o novo estilo sedimentado.

 Elza canta com menos ira, mas não menos politizada. O título do álbum vem da canção Deus Há de Ser, de Pedro Luis, uma sugestão do advento de uma nova era conduzida pela mulher. Deus É Mulher é, obviamente, um disco feminista, mas não monotemático. O álbum foi gravado nos estúdios Red Bull (São Paulo) e Tambor (Rio de Janeiro), com produção de Guilherme Kastrup, coprodução de Romulo Fróes, e tem Marcelo Cabral (baixo e bass synth), Rodrigo Campos (cavaquinho e guitarra) e Kiko Dinucci (guitarra, sintetizador e sampler), músicos de uma vanguarda pop que vem renovando a MPB.

 Elza Soares aos 88 anos mergulha no rock, em Olho Aberto (Mariá Portugal, do grupo Dona Zica) e radicaliza em Credo (Douglas Germano), de guitarras rascantes: “Minha crença eu te conto de cor/ não preciso que ninguém me ensine/ que o amor é o deus que não cabe na religião/ minha fé quem faz sou eu/ ninguém me guie/não preciso que ninguém me diga/ o que posso, o que não”. Credo acaba em caótico punk rock.

 O maestro do disco é o carioca Guilherme Kastrup, também produtor do A Mulher do Fim do Mundo, de que este álbum é uma continuação, o outro lado da moeda. Ele não somente reuniu uma seleção de músicos de uma nova vanguarda paulistana, mais precisamente o coletivo Passo Torto, como montou o repertório, de inéditas. De um total de 60 canções, pinçou duas dezenas, que mandou para a cantora. Elza Soares optou por oito, às quais foram acrescentadas mais três.

Resultou Um disco de onze faixas, assinadas por nomes feito Tulipa Ruiz (Banho), Kiko Dinucci (Exu nas Escolas, com Edgard, que participa da faixa), Rômulo Fróes (Eu Quero Comer Você, com Alice Coutinho), ou Rodrigo Campos (Clareza).

 PLANETA FOME

 Tornou-se clichê comentar a “vida sofrida” de Elza Soares, e a repetição do episódio acontecido no programa calouros de Ary Barroso. Espantado com o ar de pobreza da adolescente magrela, de 13 anos, o compositor de Aquarela do Brasil, perguntou: “De que planta você veio”. A resposta de Elza: “Venho do planeta fome”.

 A partir de 1960, quando estourou no rádio com Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues, ela aterrissou no planeta Terra. Em pouco seria uma das cantoras mais bem pagas do país. Já naquela época Elza Soares flertava com a transgressão. No auge da bossa nova, uma música de classe média Zona Sul do Rio, a mulata Zona Norte ousou lançar um álbum chamado A Bossa Negra.

 Transgrediu também quando namorou com Garrincha, um homem casado, num país que tinha na legislação um arremedo de divórcio, o desquite. Elza era uma mulher de posses, quando sustentou o jogador, com que morou na Itália. Ela sofreu, mas nem tudo em sua vida foi espinho, houve muitas flores também. É uma mulher forte, não lhe cai bem a imagem de coitadinha.

 “Uma vontade comum/ na tua geografia/ a linha dura em mim/ suor na pele marrom/ o arrepio no pelo/ a veia da tua mão/ eu quero comer você/ eu quero comer você”, versos de Eu quero comer você, um frevo, no estilo Frevotron (de Spok. DJ Dolores e Yuri Queiroga), uma das melhores faixas de um disco muito bem resolvido (de arranjos extraordinários).

 Nele, Elza Soares canta sem urgência. Está menos irada, mais pop. A voz não tem mais o mesmo alcance, ela sabe disto, e reinventou a forma de cantar. Não força barra para se adaptar ao som do grupo, isto acontece harmonicamente. Aos desavisados, ela alerta em Dentro de Cada Um (Pedro Loureiro/Luciana Mello): “A mulher de dentro de mim cansou de pretexto/a mulher de dentro de casa fugiu do seu texto”.

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