“Sem os gritinhos das fanzocas, quase anônimo, desembarcou ontem no Aeroporto dos Guararapes, para a primeira apresentação no Recife, Caetano Veloso, que foi recebido apenas pelos estudantes promotores da festa de hoje no Sport. Ele disse que nem ele mesmo entendia o tropicalismo, mas se trata de um movimento que vai vingar pois é de rebeldia a tudo que é quadrado”. Assim o Jornal do Commercio noticiava a chegada à capital pernambucana, no dia 3 de maio de 1968, do mais badalado nome da Música Popular Brasileira, considerado o líder de um movimento comentado em todo o país, a Tropicália.
Caetano Veloso veio com sua mulher, Dedé Gadelha, e os Mutantes, para uma apresentação na sede do Sport Club do Recife. Caetano Veloso e os Mutantes participariam da 1ª Festa Universitária para Coroação da Rainha dos Calouros de Todo o Nordeste. A promoção foi dos Doutorando em Ciências Médicas e do Curso Superior de Jornalismo. Dentro da festa haveria outra festa Noite Superbacana, inicialmente anunciada com Caetano Veloso e Os Baobás (banda em que tocava Liminha, que logo estaria nos Mutantes).
A festa não poderia ter sido mais tropicalista. O empresário Guilherme Araújo acertou na mesma noite shows em Campina Grande e em João Pessoa. Na primeira cidade não houve show, segundo a imprensa, porque o cachê não foi pago adiantado. O de João Pessoa aconteceu no Clube Astréa, às 23h. Terminou na madrugada do domingo. Esperava-se que os tropicalistas estivessem no palco do Sport por volta das duas da manhã. No entanto, Guilherme Araújo levou o cantor e o grupo para o hotel em que se hospedavam em Boa Viagem. De lá só sairiam depois de receberem o cachê.
Quem segurou a plateia, enquanto Caetano e os Mutantes não chegavam, foi o maestro Mario Griz e a Banda do Canequinho. Tiveram que tocar todo o repertório porque a atração principal só adentrou o palco às 4h30 da manhã, debaixo de vaias do público, a maioria estudantes. Foi uma espécie de ensaio para a apresentação de É Proibido Proibir no Tuca, em São Paulo, que aconteceria dali seis meses.
“Jovens irritados atiraram copos e garrafas no chão, além de derrubarem mesas e cadeiras, e atiraram toalhas molhadas no artista e nos Mutantes”, contou o Jornal do Commercio. No Diario de Pernambuco, o colunista João Alberto anunciava que o Sport não mais cederia sua sede para festa estudantil.
CIRANDA
A trupe tropicalista no dia seguinte deu um giro entre o Recife e Olinda. Foram ao restaurante O Veleiro, na Avenida Boa Viagem. Veloso e sua trupe esticaram até a casa do artista plástico Tiago Amorim, na praia da Enseadinha, “promovido a santuário do tropicalismo nacional e da província” (segundo o Jornal do Commercio). Entre os que estiveram na casa de Tiago, os poetas Santander (como se assinava então Marco Polo, compositor e vocalista do Ave Sangria) e Jomard Muniz de Brito. Foi improvisada uma roda de ciranda, com todo mundo dançando, e Tiago Amorim e Edy Souza (depois conhecido como Edy Star) tirando os versos de improviso.
Caetano, Dedé, os Mutantes e Guilherme Araújo fizeram mais amizades em Olinda. Visitaram a Galeria 154 e Caetano ganhou do pintor Emanuel Bernardes, já influenciado pelo movimento tropicalista, um desenho que criou para um artigo de Jomard.
Caetano Veloso voltaria ao Recife com Gilberto Gil, ambos participando de uma megashow da Rhodia, que não poderia ser mais eclético, pois reunia os dois tropicalistas com Eliana Pittman, o Brazilian Octopus, o bailarino e coreógrafo Lennie Dale e os atores Walmor Chagas e Raul Cortês, com roteiro de Millôr Fernandes, uma promoção do Lions Clube. Foram duas apresentações no Santa Isabel, num espetáculo influenciado pelo tropicalismo, mesmo que até aquele momento pouca gente soubesse explicar do que se tratava o movimento.
Jovens compositores simpatizavam e aderiam ao tropicalismo, como foi o caso do caruaruense Carlos Fernando que, em 1967, ganhou a I Feira de Música Popular do Nordeste, em parceria com Geraldo Azevedo, estreia da dupla como compositores. Alguns dias depois da passagem do tumultuado show de Caetano Veloso e os Mutantes no Sport Club do Recife, o jornalista Celso Marconi escrevia no JC:
“... Basta ver que compositores jovens como Carlos Fernando e André Morais estão totalmente inocentes ainda quanto a renovação musical que há no movimento tropicalista. (...) Carlos Fernando me afirmou que estão loucos pra fazer uma música tropicalista, mas que não sabe como é. Me pergunta se deve falar em jaca. Isso é mais do que a total inconsciência do que seja a linha musical criada pelo grupo baiano. Enquanto isso André Morais, na prática, já se aproxima do tropicalismo, fazendo uma composição que tem pelo menos a vontade de ser pra frente como é essa Bom Dia, que foi apresentada no programa de Jones Melo domingo último, inclusive André utiliza, tal como Caetano, slogans comerciais”.
Carlos Fernando nunca escreveu música sobre jaca, mas anos mais tarde teria dois frevos gravados por Caetano Veloso, Bom é Batuta (em 1979), e Noites Olindenses (em 1989), em álbuns do projeto Asas da América. Se o ainda inexperiente Carlos Fernando estava confuso, outros compositores já trilhavam o caminho do tropicalismo, desde o início. Foi, ressaltou o também compositor Marcus Vinicius de Andrade, a primeira vez em que o Recife deixava de estar defasado em relação aos movimentos que aconteciam no Sudeste. Foi assim com a bossa nova, que só criou força na cidade por volta de 1965.
Aristides Guimarães, o cantor baiano Edy Souza, o citado Marcus Vinicius, Anah Lúcia, Jomard Muniz de Brito, o jornalista Celso Marconi, o pintor Raul Córdula foram alguns dos que “tropicalizaram” a cultura recifense, desde o final de 1967. Uniram-se os do Recife com artistas, poetas, cineastas de Natal e João Pessoa, onde foi lançado o primeiro manifesto tropicalista, com uma exposição de Raul Córdula. No Jornal do Commercio, simpático ao movimento, Jomard Muniz de Brito escreveu em artigo: “ .. radicalidade tropicalista. Impasses e vantagens da comunicação de massa. Critica antropofágica da classe média por Oswald de Andrade E Caetano Veloso sempre a loucura contra a burrice, mas é preciso ter muito juízo pra ser louco tropicalista”.
Em João Pessoa, em 15 de maio de 1968, anunciava-se um outro manifesto, este anti-tropicalista. Segundo um dos articuladores, o poeta Marcus dos Anjos, o manifesta teria uma posição eminentemente irônica em relação ao tropicalismo, revelando que há mais interesses comerciais superbacanas no iniciado tropicalista, do que realmente interesse de renovação em termos culturais”.
REAÇÃO
Em Pernambuco, o tropicalismo teria um opositor de peso, o teatrólogo Ariano Suassuna. No III Festival da TV Record, em 1967, onde Caetano Veloso e Gilberto Gil plantaram as sementes do que seria batizado de Tropicália, Suassuna, em parceria com Capiba, concorreu com o baião A Cantiga de Jesuíno, defendida pela cantora hippie De Kalafe (que mora no México desde início dos anos 70). Ao voltar do Rio, declarou aos repórteres, no aeroporto, que o que observou no certame foi a vitória da temática nordestina, ignorando as duas canções mais comentadas do festival, Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, e Domingo no Parque, de Gilberto, ambas com acompanhamento de conjuntos de rock.
Em A Cantiga de Jesuíno, a melodia de Capiba recebeu uma letra com estrofes em sextilhas, e a inspiração num cangaceiro Jesuíno Brilhante (nascido no Rio Grande do Norte). A dupla Ariano e Capiba participaram também do Festival Internacional da Canção (FIC), em 1967, com São Os do Norte que Vêm (defendida por Claudionor Germano), cuja inspiração veio de um poema de Tobias Barreto. A primeira não foi classificada para a final, a segunda ficou em quinto lugar. A boa colocação no FIC, levou Ariano a acreditar na vitória da temática nordestina: “Significa o reconhecimento mesmo que tardio da autenticidade da temática nordestina, possivelmente, a mais brasileira”.
Ambas as músicas já prenunciavam o movimento armorial, reação às mudanças que se processavam na cultura brasileira, em geral, e ao tropicalismo em particular. O movimento Armorial seria lançado oficialmente, mas em maio de 1968, noticiava-se: “...Ariano Suassuna não é só autor teatral e poeta. Foram descobertos vários desenhos seus, enquanto ele participava das reuniões do conselho estadual de cultura, vai desenhando. São caras de seus iagos particulares, símbolos augustos, brasões. Que o pintor Francisco Brennand se cuide com o novo desenhista”.