Nação Zumbi tocando em casa é como ter a partida ganha antes mesmo de a bola começar a rolar. Com uma multidão com cara (e comportamento) de peregrino na plateia do palco principal do Festival de Inverno de Garanhuns, a banda ícone do mangue beat apenas confirma a pecha mítica da banda que começou (e sobreviveu) a Chico Science.
Foi um show além dos esperados standards, em que a NZ lembrou também seus vários projetos paralelos. Com Radiola NZ como último disco de estúdio, a banda pinçou do álbum um show em acordo com o que ele é: um disco de subversões reverenciosas a clássicos do rock n roll e da música popular brasileira que compõe o rosário de cápsulas inspiradoras da banda.
Assim, Refazenda, de Gil, ganha mais batuques e um sotaque mais pesadamente afro. Com a bateria de Pupillo marcando a canção, Dois animais na selva suja, de Taiguara, fica mais balançada que o original. Maracatu Atômico, velha íntima da banda, foi cartártica como sempre. Sexual Heelling, de Marvin Gaye, fica bem menos sexual e mais comportada na voz de Du Peixe, mas ainda assim hormonal,
Surpreendente (para dizer o mínimo) foi o show do coletivo baiano ÀTTØØXXÁ, grupo de uma sonoridade sui generis, de um pagodão de terreiro releito e recriado pelo eletrônico. “Popa da bunda”, composição do DJ e produtor do grupo, Rafa Dias, gravada pelo Psirico com um dos últimos hits do Carnaval baiano, era uma das peças autorais mais conhecidas do repertório. Entre a surpresa e o estranhamento, muita gente caiu na pista.
Depois dos baianos, o rapper paulistano Emicida assumiu o palco. Baseado em seu último disco, “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa”, o show traz na poética questões subjacentes ao diálogo contemporâneo entre a África histórica e o Brasil dos dias correntes: o novo feminismo, a mulher negra, a ascensão da nova classe C. Na sonoridade, seu rap dialoga com o funk de morro, o reggae e até o pagode ou o batuque dos blocos afro-baianos.
POP
Mas os corações pulsaram mesmo com os novos nomes da música brasileira que se apresentaram no Palco Pop, instalado atrás do Parque Euclides Dourado, a poucos metros de caminhada da Praça Mestre Dominguinhos.
Nova diva da música afirmativamente negra do Brasil, a baiana (radicada em São Paulo) Xênia França repetiu o magnetismo que destilou quando de sua apresentação do festival Rec-Beat, durante o último Carnaval do Recife.
Respeitando o roteiro original do show, a voz grave, velvet, potente , a cantora abre a apresentação aumentando a contundência dos versos de “Respeitem meus cabelos, Brancos”, composição de Chico César a partir de um trocadilho com o clássico Cabelos Brancos, de Nelson Gonçalves.
A mensagem se tornou ainda mais aguda quando ela entoou os versos de Preta Yayá, outro dos pontos altos do show: “Música preta, sou teu instrumento, vim pra te servir“. Com suor e elegância, a ex-modelo Xênia se confirma como a diva de faca
nos dentes, magnetismo na dicção, quebrando os clichês da própria música afirmativa e engajada, para, com uma beleza vertiginosa, se confirmar como a grande voz da diáspora negra nesses anos correntes.
Incediário, para dizer o mínimo, foi o show da cearense Jonnata Doll e Os Garotos Solventes, que abriu os trabalhos do Palco Pop no começo da noite, para uma plateia ainda muito insipiente (era show pra depois da meia noite) . Rock de garagem, hormônios em altos decibéis, pós-punk, rock arte e performático, não é mesmo simples classificar o som dos garotos de
Fortaleza que, com personalidade, trazem para seu sotaque influências múltiplas de Michael Jackson, Iggy Pop e, claro, Ramones. Esse festival está mesmo com vários e grandes sotaques.