Há 17 anos, a jornalista, produtora e assessora de comunicação Aline Feitosa mora com a família numa simpática casa dos anos 1950, jardim, terraço e quintal, numa das ruas onde o Espinheiro ainda não virou um muro de prédios. Após uma década de intensa convivência com a cena musical do Recife, de Olinda e de outras plagas, prestando consultorias a festivais e artistas, resolveu fazer da residência uma casa extraoficial da música.
Com pouco acesso aos grandes teatros e a quase inexistência de casas de show de médio ou pequeno porte na cidade por parte dos artistas, Aline abriu o quintal para pequenos encontros musicais. Hoje, sua casa é o endereço mais frequentado e exemplo mais bem acabado de uma pequena – e nem tão silenciosa geografia cultural do Recife. Em espaços de moradia, os músicos têm se encontrado para mostrar o trabalho ao público.
“Esses pequenos espaços são fundamentais para a existência e alimento da nossa música”, diz o cantor e compositor Almério. “É um desses bunkers necessários. Lugar de encontros. Pausa para respirar e realinhar a coluna e as ideias. Sempre, depois de uma noitada lá, escrevo uma canção”, diz o músico Juliano Holanda. Foi justamente Juliano quem fez o primeiro show, há um ano, no quintal de Aline. Ali, todas as quartas-feiras, um público diminuto, 50 pessoas no máximo, para não comprometer a dinâmica da casa ou da rua, se encontram nos shows do projeto caseiro por ela batizado de Pequeno Latifúndio.
“O Pequeno Latifúndio é um lar. Não um bar. Quando abriu pela primeira vez, Juliano foi um dos entusiastas para que eu abrigasse miniencontros musicais. A partir daí, ficou claro que aquele lar abriria as portas não apenas para suprir e acolher a grande oferta de compositores no Estado, mas também para criar um ambiente de união e discussões sobre o setor na música”, diz Aline.
Guardadas as proporções, o quintal de Aline é como o apartamento de Nara Leão foi no Rio de Janeiro da bossa nova: ponto de encontro onde artistas e amigos compartilham experiências e ideias. O funcionamento é simples: “O público faz uma reserva prévia pelo instagram @pequenolatifundio e paga R$ 20 de cachê simbólico”, diz ela. Os recursos pagam minimamente os músicos e funcionários – a anfitriã monta um cardápio enxuto e vende algumas bebidas, sem precisar mexer no bolso. “Não tenho mesas, para que as pessoas não dispersem do objetivo: apreciar o artista”. Para evitar volumes inconvenientes, as apresentações são acústicas.
Pelo Pequeno Latifúndio já passou praticamente todo mundo faz música autoral hoje em Pernambuco: Juliano Holanda, Jr. Black, Isaar, Almério, Lucas dos Prazeres, Gilú Amaral, Lucas Santtana (SP), Thiago Martins, Marcello Rangel, Tonfil, Isadora Melo, Sofia Freire, Juvenil Silva, Helton Moura, PC Silva, José Demóstenes e Publius. “Adoro ouvir coisas novas e estou sempre com os ouvidos bem atentos”, comenta aline, que já tem calendário fechado para os próximos dias: Flaira Ferro (10/), Kiko Dinucci (16), Fred ZeroQuatro (24) e Raphael Costa (7/11).
JAMBO AZUL E OUTRAS PARAGENS
Há cerca de um mês, Juvenil Silva, o bardo da cena independente, se mudou para uma casa antiga na Boa Vista. “Morava em apartamentos e sentia falta de jardim e quintal”, diz ele, sobre a casa modernista, tombada, dos anos 1930, na Rua Bispo Cardoso Ayres. Para dividir os cômodos, juntaram-se a ele as artistas Carla Lima, Natasha Moura e Thays Freitas, levando, na mudança, um combo de arquitetura, moda, design, música e fotografia. “A Jambo Azul é uma residência/resistência artística e colaborativa que chega como contraponto à recente diminuição de espaços culturais e sociais na cidade do Recife”, diz .
Há 15 dias, na abertura da Jambo Azul (contato pelo jamboazul.contato@gmail.com), houve um festival de jam sessions com mais de dez músicos da cena contemporânea. Nesta semana, Juvenil faz um show, literalmente, em casa. “Sempre gostei de trabalhar em casa, ensaiar, gravar, fazer jam sessions”, diz ele, que, com os amigos, montou também um sebo e um brechó de livros e roupas. Estilista, Carla Lima mantém ali o QG de sua grife Abacaxi de Praia.
Os projetos de Aline e Juvenil somam-se a iniciativas já consolidadas na cidade. Numa ampla casa do bairro do Hipódromo, cinco amigos encontraram na gastronomia e na música a forma de viabilizar a morada juntos, criando o Mundo Lá de Casa (R. Martins Ribeiro, 381, fone: 99810-6285/ mundoladecasa@gmail.com) “Tínhamos em comum o vinho, a música, a gastronomia e o amor por tudo isso que, no fim, só revelava a nossa aptidão em compartilhar a vida”, diz Manu Duque Lins, ex-bancária e escritora que, junto a Jacque Farias, “enfermeira e instrutora de meditação apaixonada por música” e Lu, “uma pediatra louca por casa cheia e mesa farta”, deu início à ideia quando ainda moravam num apartamento.
A iniciativa deu tão certo que precisaram se mudar para a casa. Ali, toda quinta-feira, jantares com menu fechado (R$ 120, cinco etapas) são preparados pelos chefs Vinícius Arruda e Maria Rodrigues. Com o detalhe: formada em gastronomia depois de completar 60 anos, Maria é mãe de Lu e logo se integrou ao projeto. Nas quartas, a casa vira um café com uma proposta de espaço aberto para encontros, trocas, coworking.
Aos sábados ou sextas, a casa costuma receber apresentações musicais. “As pessoas sabem que é nossa casa, se comportam como visitas queridas”, ela diz. Por lá, já passaram nomes como a paulistana Raíssa Bittar e as pernambucanas Isadora Melo e Isabela Moraes.
Quem também já se habituou a abrir a casa a músicos e público é a artista plástica Clarissa Garcia. Moradora há 29 anos de um sobradinho no Poço da Panela, reservou o primeiro andar como espaço privado e, no térreo, há três anos, serve vinhos, drinques, cervejas, comidinhas como sua já conhecida pizza crocante e, sobretudo, boa música – normalmente, às sextas e sábados.
O nome do projeto de Clarissa é Poço das Artes (Rua Álvaro Macedo, 54, Poço da Panela. Fone: 3441-6623). “No início, a proposta era música instrumental. Hoje, pode ser canção também, mas sempre com instrumentistas muito bons”, diz ela, que tem visto passar pela sala de casa nomes como Publius, Toninho Arcoverde, Geraldo Maia, Sérgio Ferraz e uma noite flamenca com Evandro Natividade. Na última quinta, excepcionalmente, houve uma apresentação do quarteto paulistano Fios de Choro.
Casas de portas e varandas abertas para a música autoral.