A última vez que a imprensa abriu as páginas para a americana Wendy Carlos foi em 1998, quando ela processou o escocês Momus, músico e jornalista (da revista Wired). O motivo da querela foi uma faixa intitulada Walter Carlos, do álbum The Little Red Songbook. Na letra, Wendy volta ao passado e se casa com Walter. O problema é que Wendy Carlos e Walter Carlos são a mesma pessoa. Ela fez cirurgia para mudança de sexo em 1972, mas só a tornou pública sete anos mais tarde, numa célebre entrevista à revista Playboy.
Wendy Carlos é conhecida e cultuada pelos cinéfilos por assinar a trilha de filmes de Stanley Kubrick – Laranja Mecânica (1971), e O Iluminado (1980). Em Laranja Mecânica, Kubrick usou pouco do que Carlos criou. Ele lançou um álbum com o que ficou fora da trilha oficial do filme. Ela se tornou famosa em 1968, com o álbum Switched-On Bach, que quebrou regras e recordes, num ano em que foram lançados Astral Weeks (Van Morrison), The Beatles – Álbum Branco (The Beatles), Cheap Thrills (Janis Joplin & Holding Company), Beggar’s Banquet (The Rolling Stones) e Electric Ladyland (The Jimi Hendrix Experience).
O disco de Walter Carlos tem repertório inteiro dedicado à música de Johann Sebastian Bach (1685/1750). Em meio a algaravia da época, que ia do folk rock à psicodelia ou ao proto heavy metal, um disco com peças barrocas, compostas dois séculos antes, vendeu um milhão de cópias, só nos EUA. Pela primeira vez um músico erudito recebia Disco de Platina. A razão do sucesso não se deveu apenas ao talento de Walter Carlos, mas sobretudo ao sintetizador analógico Moog, desenvolvido por Robert Moog, um instrumento limitado, dificílimo de dominar.
O Moog Foi apresentado pela primeira vez em público no festival Monterrey Pop, em 1967. Não por acaso, bandas de rock foram pioneiras em gravar com Moog: The Byrds, The Monkees, The Doors e The Rolling Stones. Mas, até aí, o sintetizador de Robert Moog continuava sendo decorativo – bijuterias adornando canções. Walter Carlos mostrou suas possibilidades. Em Switched-On Bach não tentou, por exemplo, usar o sintetizador para emular outros instrumentos. Muito menos para criar trilhas futuristas fake, evitando estereótipos, como sugerir supostas ligações com robôs.
A sonoridade de sua interpretação das peças do compositor alemão era inovadora, não foi reprocessada no estúdio. Era o som que extraiu do Moog, sem parâmetros na música eletrônica que se produziu até então. Desde o Theremin, patenteado em 1928 pelo russo Léon Theremin, instrumentos eletrônicos serviam para exibições de sons estranhos, “mágicos”, ou para experiências intransponíveis de autores de vanguarda.
Walter Carlos o empregou como uma forma de fazer música em um novo instrumento, ou um Steinway futurista. Por isso foi também muito popular entre os que curtiam o rock espacial do Pink Floyd ou de Jimi Hendrix, ou seja, entre hippies e na contracultura em geral. Não por acaso, o mesmo público que lotava casas de cinema para assistir a 2001– Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, também de 1968. Ano em que a corrida espacial virou assunto do dia a dia.
MOOG BEM TEMPERADO
Walter Carlos conseguiu tocar os Concertos de Brandenburgo, o Cravo Bem Temperado, Jesus Alegria dos Homens, os grandes sucessos de J.S Bach, naquele sintetizador rudimentar porque foi quase co-autor do projeto. A medida que Robert Moog o desenvolvia, pedia sugestões a Carlos (que cursou física, antes de trabalhar com música). “Era um dispositivo muito limitado. Não era lá essas coisas como instrumento musical. Muito precário em formas de expressões, a prova disto é que havia muito pouca gente que usava o instrumento, e que fizesse coisas interessantes nele. O motivo é que é muito difícil trabalhar com ele. Ou seja, você precisava desenvolver uma certa habilidade para desenvolver uma ideia. As pessoas não se tocaram do quanto se precisava ser pessoalmente inventivo e habilidoso pelo fato de o instrumento ser tão deficiente”, comentou Wendy Carlos, à revista American Mavericks (em 2003).
Walter Carlos comprou seu Moog, em 1966 e o próprio Robert Moog foi leva-lo na casa dele. O visual do sintetizador era o de uma mesa de telefonista. Um gabinete com alguns módulos. O que fazia com que as pessoas o ligassem à música era o teclado que, mesmo assim, dificultava ainda mais o seu manejo. “Achavam que bastava sentar diante de um Moog e manipular as teclas, como se fosse um piano ou um órgão”. O álbum foi gravado em sua própria casa, com a produtora Rachel Elkind e o músico Ben Folkman. Um trabalho não apenas musical como também braçal.
O Moog é monofônico, ou seja, emite uma nota de cada vez, e desafinava com a mais leve mudança de temperatura. Gravava-se e escutava-se logo em seguida para conferir a afinação. Um exercício de paciência. Rachel Elkind ofereceu o disco à Columbia, ex-empregada da gravadora, sabia que ela iniciara uma campanha chamada Bach to Rock. Não era todo dia que alguém chegava com um acetato com músicas gravada num sintetizador Moog.
A Columbia só aceitou porque iria gastar muito pouco com o projeto. Os executivos da gravadora nem em sonhos imaginariam que Switched-on Bach venderia tanto LPs, ganharia três prêmios Grammy e desbancaria os Beatles e o Álbum Branco das paradas. Depois do sucesso de Switched on Bach, o Moog passou a ser instrumento obrigatório em estúdios. Várias faixas de Abbey Road, dos Beatles, tem o som do Moog. Nas turnês do Emerson, Lake & Palmer, o tecladista Keith Emerson viajava com cinco sintetizadores. Walter Carlos seria indiretamente responsável pela direção ao progressivo que o rock tomou. O sintetizador foi acrescentado ao equipamento de quase todas as bandas de rock, que exploraram suas sonoridades levar o gênero adiante.
TRILHAS
Quando Walter Carlos gravou Switched-On Bach já tomava hormônios para se submeter à mudança de sexo. Na célebre entrevista à revista Playboy, ele contou que desde os seis anos de idade se sentia como menina, preferia cabelos compridos e roupas femininas, sem entender porque os país não aprovavam. Uma vez foi flagrado, e eles achavam que o menino se fantasiava para o Halloween. Os hormônios transformavam-lhe a aparência.
No auge do sucesso, Walter recuava convite para apresentações, pois as mudanças já estavam bastante adiantadas. Quando criou coragem para dar concertos, foi sob uma persona masculina, de terno e gravata, costeletas postiças e peruca. Ele se submeteria à cirurgia em 1972. Durante cinco anos, a transexual Wendy Carlos não teve coragem de sair do armário: “Acabei me cansando de mentir. Com o passar do tempo, o medo de que as pessoas pudessem saber diminuiu. O clima mudou e acho que chegou a hora. Com a publicação desta entrevista meus amigos não precisam mais mentir, nem dissimular pra mim”, comentário de Wendy Carlos na Playboy. No mesmo comentário, ela confessou que estava com muito medo da reação das pessoas.
Wendy Carlos não deixou nenhuma pergunta sem resposta. Revelou os mínimos detalhes de sua odisseia para se transformar de Walter em Wendy, de como desperdiçou dez anos de carreira escondido em casa, o afastamento dos parentes, que não aceitaram a mudança de sexo. Ou constrangimentos cotidianos, em bancos, na rua, ou quando recebia visitas. Neste caso evitava falar, porque o timbre de voz o denunciaria. Aconteceu isto quando Stevie Wonder esteve uma vez no apartamento que dividia com a produtora Rachel.
Quando fez a música de Laranja Mecânica, o distraído Stanley Kubrick demorou a notar que havia algo diferente em Walter Carlos: “Kubrick estava tão intensamente envolvido no projeto que se eu chegasse nua ele talvez perguntasse se eu não estaria com frio”. Wendy Carlos oficializou a troca de nome, no mesmo ano da entrevista. Aos 79 anos, vive em Nova Iorque, continua fazendo música, a maioria das vezes para cinema ou TV. Assinou trilhas de filmes como, Tron (1982), A Bela e a Fera (1986)