Chico Buarque acrescenta mais um DVD à sua obra, Caravanas ao Vivo (Biscoito Fino), gravado no Tom Brasil, em São Paulo, durante a turnê que circulou pelo Brasil e exterior, entre 2017 e 2018. Uma série de shows com plateias lotadas, ingressos esgotados, o que tem acontecido desde que o cantor passou a fazer turnês amarradas a um disco, e não apresentações eventuais. Foram poucas, em 53 anos de carreira, se contados a partir do compacto (RGE) com Pedro Pedreiro e Sonho de um Carnaval, com que concorreu no I Festival da Música Popular Brasil, promovido pela TV Excelsior.
Nos anos 60, Chico ainda seguia a linha “cantor de rádio”, o artista que emplacava uma música na parada de sucesso, e a divulgava em programas de auditório, em emissoras de rádio ou TV. Em 1966, por exemplo, Chico Buarque viajou pelo País impulsionado pelo seu hit inaugural A Banda. Nos anos 70, apesar de estar na mira da censura do regime militar, ele teve uma década muito produtiva, com musicais, filmes, peças. Os anos 80 foram mais de estúdio e bastidores. Somente em 1993, quando lançou o álbum Paratodos, Chico passou a empreender turnês nos padrões estabelecidos pelo show bizz. Não carecia de sucesso para viajar, a era do compacto havia passado. Sua obra já era extensa e consolidada. Cada CD com uma turnê correspondente.
Em todas, da plateia, emitiam-se os inevitáveis “lindo”, “gostoso”, “me leva pra casa” ou pedidos de composições favoritas. Shows realizados seguindo uma fórmula, de qualidade acima de questionamentos, porém não indo além do limite do palco. Com Caravanas foi diferente. Lançado em agosto de 2017, o show estreou em outubro, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Aterrissou no Teatro Guararapes em 3 de maio de 2018. Em Pernambuco também envolta no mesmo clima de cisma ideológico das paradas anteriores. Não suscitou apenas os óbvios arroubos de euforia de fãs.
O País já surfava na onda da polarização, motivada pelo impeachment da presidente Dilma Roussef, em 2016, pela prisão do presidente Lula, e pela rejeição ao presidente Temer, que resultaram nas palavras de ordem, respectivamente, “É golpe”, “Lula Livre” e “Fora Temer”. Chico Buarque, petista fervoroso, certamente entendia que nada seria como antes, pelas reações à Tua Cantiga, primeiro single lançado depois do álbum Caravanas. O compositor sempre elogiado pela sua compreensão da alma feminina foi acusado de machista, numa letra em que conta na primeira pessoa a paixão incontida de um sujeito que pela, amada, larga mulher e filhos.
Nunca versos de canções suas alcançaram tal nível de polêmicas. Ele teve que interromper a neutralidade no bate-boca, com uma argumentação no seu perfil oficial no Facebook: “Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante. Diálogo entreouvido na fila de um supermercado”.
TERRA EM TRANSE
Mestre na linguagem da fresta, de passar a mensagem nas entrelinhas, Apesar de você (que não estava no show) é um dos exemplos mais eficientes da obra de Chico. Lançada pouco tempo depois do AI-5, na fase mais dura do regime militar, a canção foi liberada sem restrições, entendida como o desabafo rancoroso para uma ou um ex. O samba estava nas paradas, tocando no rádio País afora, quando nas hostes do governo atentaram que não era um desabafo, mas uma catilinária às autoridades constituídas.
Da mesma forma, embutidas nas três dezenas de canções do set-list de Caravanas (sem modificações até o show final, em Fortaleza), há sutis estocadas na conjuntura política do País, no que pode passar por uma retrospectiva de fases de sua obra. É esta resistência que eleva Caravanas ao Vivo, registro do show, de ser mais do que um suvenir da turnê. É certo que o formato do show é praticamente o das turnês anteriores, muda, claro, o cenário (este com a elegância e requinte de Hélio Eichbauer e Maneco Kinderé), porém continua sendo mais recital do que show.
O cantor segue à risca o roteiro traçado, em que encaixa todas as faixas do disco Caravanas, interagindo com as demais canções. No entanto, entre a beleza do repertório, está o Chico injuriado, pelos haters que destilam bílis nos comentários da página dele no Facebook, que o provocavam na rua, que disseminam fake news contra ele. Criticam seu apoio a Cuba? Ele canta Yolanda, do cubano Pablo Milanés, ou Casualmente, parceria de Chico com o baixista Jorge Hélder, uma evocação à capital da ilha caribenha: “A música, a mulher/O crepúsculo, a catedral/Até mesmo o mar em Havana é o mesmo/ mas não é igual”. Já na abertura Chico diz a que veio, no samba de Assis Valente (lançado por Carmem Miranda, em 1934). “Minha embaixada chegou/Deixa o meu povo passar/Meu povo pede licença/Pra na batucada desacatar”.
Caravanas ao Vivo tanto pode ser assistido e degustado pela beleza das canções, do carisma de Chico Buarque, dos engenhosos arranjos de Luiz Claudio Ramos, quanto pelo momento histórico em que o artista circulou por um País que se polarizava ideologicamente. Aqui no Recife, por exemplo, no final do show, um dos lados se manifestou, com faixas, slogans, pretendendo que o cantor explicitasse com quem está, embora isto fosse mais do que óbvio.
Daqui há 50 anos, quando alguém for responder à clássica pergunta “qual sua lembrança mais forte de 2018”, provavelmente a resposta será: “Em qual dia?”. Muitos certamente citarão o dia em que viram o show da turnê Caravanas, de Chico Buarque. Independente do rumo que for tomado pela nação, Caravanas ao Vivo é um registro de uma terra em transe.