“Nosso conjunto não nasceu à toa. Nosso objetivo sempre foi falar da violência da polícia contra os pobres, do racismo, e da autovalorização dos negros. Queremos contar as verdades que as escolas não contam”, quem diz isto é KL jay, do Racionais MC’s, numa matéria no Jornal do Brasil (de 8 de novembro de 1992), intitulada “Rap em São Paulo Dá Lição de Cidadania”. Na época, o nome do grupo ainda não tinha ultrapassado os limites de São Paulo, o próprio rap ainda era tratado na imprensa como “canto falado”.
No início dos anos 90, foram muitos rappers Brasil afora. Mas os Racionais MC’s eram diferentes. Não apenas denunciavam os males da sociedade, os desmandos das autoridades, mas tentavam melhorar a vida de crianças e adolescentes na periferia de São Paulo (Mano Brown foi presidente da Associação de Meninos de Rua do ABC). O quarteto de “manos” paulistanos, respeitado pela sua trajetória de dez anos de integridade, comprometimento, lançou em novembro de 1997 pelo próprio selo, o Cosa Nostra, o álbum Sobrevivendo no Inferno, não apenas o mais importante do rap nacional, como um dos mais importantes da música brasileira.
Sem distribuição de uma grande gravadora, quase sem divulgação, nem aparecer na TV (recusaram convites para fazer Domingão do Faustão e Planeta Xuxa), o disco vendeu 150 mil cópias na semana do lançamento. Em março de 1998, alcançou marca de meio milhão de cópias vendidas. Certamente chegou ao dobro disso, contando-se com o que se vendeu na pirataria, na época devorando vorazmente o mercado fonográfico.
O Racionais MC’s angariou a simpatia da imprensa. Sobrevivendo no Inferno foi o Disco do Ano, em enquete feita pela revista ShowBizz entre os mais conhecidos críticos de música do país. A faixa Capítulo 4, Versículo 3 chegou ao primeiro lugar nas paradas de algumas FMs, feito a Rádio Cidade. Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edy Rock não aceitavam tocar em locais que considerassem burgueses.
Uma das poucas concessões que fizeram foi gravar um clipe para a MTV, de Diário de um Detento, uma das faixas mais contundentes de Sobrevivendo no Inferno. Concessão, ma non troppo. O clipe foi gravado no Carandiru, com Mano Brown vestido com o uniforme igual ao que usavam os detentos do presídio, tristemente célebre pelo massacre ali acontecido em 2 de outubro de 1992. Só a MTV teve permissão de mostrar o clipe.
ENSAIO
Duas décadas depois, a Companhia das Letras lança o livro do disco, numa encadernação luxuosa com capa em alto relevo, corte em dourado, assemelhando-o a livro religiosos, as letras identificando quem é o autor, especificando detalhes que são escutados no álbum. Fotos em p&b ilustram o livro, que é aberto com um ensaio do professor paulista Acauam Silvério de Oliveira que, ao fazer doutorado na USP, estudou a obra do Racionais MC’s, especificamente seu emblemático álbum.
Atualmente ensinando literatura brasileira na UPE (em Garanhuns), Acauam foi convidado por um dos diretores da Companhia das Letras, Ricardo Terperman (ele também autor de livro sobre o hip hop): “Ele me conhecia e sabia que fiz uma tese de doutorado sobre os Racionais, quando ficou acertado que a editora iria lançar Sobrevivendo no Inferno em livro, Ricardo me convidou para escrever a apresentação”
Até então ele tinha intimidade com a obra, mas não conhecia os integrantes do grupo: “Depois conheci Ice Blue, Edy Rock e Eliane Dias, produtora e esposa de Mano Brown, que me disse ter gostado bastante do texto e do livro. Acho que demorou muito a reconhecerem a importância, a qualidade, mas acho que é assim mesmo sendo uma obra de quatro artistas periféricos, demora mesmo este processo do rap e do trabalho dos”. Em relação ao disco, o professor acha que ele foi fundamental há 21 anos:
“Tanto em numero de vendas, quanto da construção de uma identidade negra periférica. Agora ele retoma o grau de importância, porque a gente teve uma série de retrocessos sociais, perdas de direito, avanço do conservadorismo, que fazem com que o disco se torne atual novamente nos dias de hoje”.
Um dos motivos de Sobrevivendo no Inferno acabar em livro foi o fato de as letras do álbum terem sido incluídas na lista da Unicamp de leitura obrigatória no vestibular de 2019. O professor Acauam Silvério Lopes ressalta o conceito do disco, que tem um núcleo narrativo comparado por ele com o filme Tropa de Elite, em sua dissertação de pós-graduação intitulada O Fim da Canção? Racionais MC’s Como Efeito Colateral do Sistema Cancional Brasileiro.
“A proposta do filme, em tudo contrária a dos Racionais, é obscurantista. Em suma: Tropa de Elite é uma espécie de Diário de um Detento narrado da perspectiva do Robocop do Sistema”, argumenta. Segundo Acauam, uma das lições dos Racionais no disco é a questão da segurança pública e o lugar do bandido neste contexto. O que fazer com alguém não é integrado num projeto de sociedade.
“O projeto de estado nacional é um projeto de encarceramento em massa e extermínio da periferia, isso é o objeto de reflexão do disco Sobrevivendo no Inferno. Eles constroem uma alegoria pra essa situação, ao mesmo tempo em que procuram por respostas, formas de sobrevivência, que não pertençam ao estado. É uma tentativa de organização da periferia também. Tanto pelo movimento hip hop, quanto pela organização de conceitos, uma estrutura estética e social que permite àqueles sujeitos encontrarem formas de sobrevivência. Acho que atualmente esta idéia de sobreviver no inferno é absolutamente fundamental, porque é meio como uma metáfora do que a gente vai precisar hoje em dia. Tem que reaprender com os Racionais e com a periferia esta ideia de sobreviver, de viver num contexto que é absolutamente adverso, que em grande medida é construída, contra nós, contra os sujeitos periféricos, contra o cidadão”, define.