Disco

João Fênix num disco feito com a benção de Yansã

Ele foi produzido por Jaime Alem e Guilherme Kastrup

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 11/12/2018 às 12:04
Foto: Léo Aversa/Divulgação
Ele foi produzido por Jaime Alem e Guilherme Kastrup - FOTO: Foto: Léo Aversa/Divulgação
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João Fênix é um cantor recifense, com seis discos lançados. O último deles, Minha Boca Não Tem Nome (Biscoito Fino), chegou à lojas no final de novembro. Na capa a roupa de João Fênix tem o vermelho de Iansã, sua orixá, e ele emula o castrati italiano Carlo Maria Michelangelo Nicola Broschi, conhecido por Farinelli. Castrar meninos foi uma prática comum na Europa, a fim de que suas vozes não encorpassem quando crescessem. Durante anos, Farinelli foi o mais bem pago cantor da Europa, pela belíssima emissão de soprano ligeiro. João Fênix tem uma privilegiada voz de contralto. “Havia uma certa estranheza quando me tornei adolescente. Eu fui frágil até descobrir a arte, tudo mudou porque entendi qual seria o meu escape. Criei um personagem forte, mesmo no colégio (estudou, dos 3 aos 17 anos no Colégio Maria Auxiliadora, nas Graças). Incomodou um pouco ter voz assim. Porém só conheci pessoas maravilhosas por causa da minha voz. O que início foi um certo desconforto, mas acabou sendo uma força”, comenta João Fênix, que deixou o Recife nos anos 90, quando no caldeirão musical recifense fervia um caldo revigorante, de muitos ingredientes. No entanto, a música de Fênix não constava desta receita.

Ele se mudou para o Rio, onde se tornou amigo de Wolf Maia, com quem trabalhou num musical. Do Rio foi para Nova Iorque. Fez o estágio de cantor da noite em NYC. De Volta ao Rio decidiu gravar o primeiro disco. Queria Ney Matogrosso como produtor: “Fui a um show dele com Cininha de Paula, chamei Ney para produzir o disco. Ele me disse que eu teria primeiro que ter a minha música, mas que gravaria no disco”. Fênix conheceu, num projeto da Sonny Music, o paulista (de Franca) Jaime Alem, maestro, que se destacou como arranjador e violonista com Maria Bethânia.

Alem concordou em produzir disco de estreia do jovem e desconhecido de Pernambuco, Eu, Causa e Efeito (2001, Nikita), com a prometida participação especial de Ney Matogrosso. O garoto pensava grande. O show do disco Teatro do Shopping Guararapes contou com a percussão luxuosa de Naná Vasconcelos. Ney Matogrosso, por sua vez, veio do Rio a Jaboatão, para participar de uma canção, Fim de Mundo (Patricia Mello). Com música em novela, elogios desde que cantou no musical Os Quatro Carneirinhos, de Wolf Maia, o motivo mais provável para João Fênix não ter mais projeção no cenário da MPB é mora parte do ano em Washington D.C, onde vive seu marido, e no Rio, e os discos não têm uma divulgação mais ampla. Com Minha Boca Não Tem Nome vai ser diferente. Primeiro porque atingiu uma maturidade artística de que precisa usufruir, depois porque ele não se vale de falsa modéstia ao comentar sobre o novo álbum: “Este é o meu melhor CD, a vida nos leva a este processo. Gosto dele pelo repertório, pelos produtores, a minha essência está neste disco”.

PRODUÇÃO

É quase regra atual o artista se cercar de dois ou mais produtores quando faz disco. Produções cujos resultados mais tarde são devidamente encaixados. João Fênix decidiu trabalhar com dois produtores, o citado Jaime Alem, e o carioca Guilherme Kastrup, um dos mais festejados da nova geração da produção no país, responsável por dois discos antológicos, A Mulher do Fim do Mundo (2015) e Deus É Mulher (2018), ambos de Elza Soares: “Sempre busquei um equilíbrio entre a música brasileira mais elaborada, com seus recursos harmônicos, e alguém que sujasse, que quebrasse essa estética. Jr. Tostoi (que toca com Lenine) fez isso em dois dos meus discos e agora foi o Kastrup”, comenta Fênix. “Jaime, como músico, no que diz respeito a canto, é a forma como eu sou na essência. Como ele trabalha há muito tempo com cantoras e cantores, cria uma espécie de proteção da minha coloratura. Kastrup é a forma como eu gostaria de ser visto pelo mercado hoje.”

Alem e Kastrup representam duas alas da MPB. O primeiro mais alinhado à tradição, mas não ao conservadorismo, claro. O segundo trilha uma estrada mais moderna, experimental da MPB. Ambos se complementam num disco incensado por João Fênix. Jaime Alem, ao violão, e Kastrup, na bateria, tocaram no disco com o guitarrista Dustan Gallas, o baixista Alberto Continentino, enquanto Felipe Abreu teve o trabalho da preparação vocal.

O repertório, tal como na maioria dos discos anteriores, é bastante eclético, ao mesmo tempo pessoal e confessional. Minha Boca Não Tem Nome, que abre o disco, é de Juliano Holanda e Tibério Azul, artistas de um grupo atuante no Recife, e que está estendendo-se para o Sudeste: “Um pronome não define/ Uma roupa não explica/ Se quiser deita comigo/ E se não quiser não fica”. Esta é uma das sete canções inéditas do álbum, assinada por autores de nichos variados. O pontapé inicial para seleção das composições veio de Sérgio Sampaio, um autor emblemático para a fase de sufoco vivido pela cultura brasileira, sobretudo depois do AI-5. Roda Morta, a canção de Sampaio está na álbum inacabado Cruel, que só foi lançado em 2006.

A escolha da música teve inspiração política: “Desde o impeachment da Dilma Rousseff, e tudo aquilo, eu já tinha noção de que ia partir de um lugar muito ácido e muito doloroso em que a gente estava indo, da raiva e da angústia que eu estava sentindo. Embora tenha casa nos Estados Unidos, eu moro mesmo é no Brasil”. João Fênix conta que não sabia que direção o disco iria seguir depois, e o repertório foi tomando forma. Porém a canção mais forte para o próprio cantor veio de Moreno Veloso e Igor de Carvalho, é a mais confessional, autobiográfica até, do álbum, um pedido que fez aos compositores.

Fênix perdeu pai e mãe carnais quando estava com cinco anos, foi criado por parentes. Ele conta que, numa madrugada, no início da adolescência, caminhava a esmo, sozinho, pela Praia de Boa Viagem, no Recife, e de repente resolveu implorar ao Universo uma arma para lutar. “Naquele momento me veio essa voz”. Ele confessa que tem uma relação simbiótica com a canção por causa deste episódio:

“Sou umbandista e dentro da umbanda descobri que sou filho de Iansã e que a minha voz me foi dada por ela”. Disse aos autores de Meu Elemento que nesse trabalho tinha necessidade de falar desse orixá que deu essa voz privilegiada sob essas circunstâncias. Um disco de pausas e lutas, que inclui canções como Desterro (Reginaldo Rossi), Se Eu Merecer (Pedro Luís e Ivan Santos), Exercício Diário da Paixão (Carlos Posada) e Ando de Bando (Ivor Lancellotti e Álvaro Lancellotti).

A turnê de Minha Boca Não Tem Nome começa no dia 31 de janeiro, de 2019, no Teatro de Santa Isabel.

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