Carnaval 2019

O samba tem história no Carnaval do Recife

Há muitas décadas o samba está presente no Carnaval do Recife, Pernambuco. Auge das escolas aconteceu durante década de 60

José Teles
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José Teles
Publicado em 13/01/2019 às 9:47 | Atualizado em 23/05/2022 às 17:59
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Auge das escolas aconteceu durante década de 60 - FOTO: Foto: reprodução
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O Carnaval de 2019 no Recife trouxe entre suas novidades ter dois sambistas como homenageados. Mas muitos foliões não admitem “estrangeirismos” no Carnaval de Pernambuco. É o caso de Thammy Alves Dantas, moradora da Zona Norte e passista de frevo, cuja indignação pela escolha foi manifestada num e-mail enviado à redação do JC:

"Belo Xis e Gerlane Lops homenageados do Carnaval 2019? Geraldo Júlio (prefeito) tirou essa brilhante ideia de onde? Outra coisa, o samba é do Rio. Pelo amor de Deus! Quem são as pessoas que escolhem os homenageados? Veja, não é nada pessoal. Nada contra eles. Mas tem dois sambistas, e ninguém relacionado ao frevo”, escreveu Thammy.

Tanto Belo Xis quanto Gerlane Lops, além de um longo currículo dedicado ao gênero, apenas dão continuidade ao que é parte intrínseca dos festejos de Momo em Pernambuco, desde que o samba é samba. Por sinal, foi no Recife, no jornal O Carapuceiro, do Padre Lopes Gama, em 1838, que a palavra “samba” apareceu pela primeira na imprensa brasileira. “Samba” é recorrente nos jornais pernambucanos durante todo o século 19.

Frevo e samba

Assim como frevo foi usado até os anos 20 para designar não um gênero, mas o entusiasmo dos passistas acompanhando um clube de pedestres, ou troça, pelas pontes e ruas estreitas do Recife e de Olinda, o samba era uma festa do "populacho", na maioria das vezes de negros e mulatos.

Eram reuniões que precisavam de licença prévia da polícia para acontecer, mesmo assim, não raro terminavam em confusão, quase sempre provocada por um “Acaba samba”, ou pela polícia.

Um exemplo: Num anúncio de escravo fugido, em fevereiro de 1875, são oferecidos cem mil réis de recompensa a quem prender, ou denunciar, um por nome de Marco. Depois dos detalhes sobre sua aparência física, acrescentaram: “Toca violão e canta, e procura sempre achar-se em samba e com mulher em companhia”.  

A fuga de outro chamado Vicente rendeu mais de seis meses de anúncios nos jornais do Recife. Uma de suas características era ser dado a tocar violão e a gostar de samba. Este Vicente não deve ter voltado ao cativeiro. Até o final do século 19, é citado um capadócio de nome Vicente, sempre com um violão, e se metendo em encrencas.

Samba carioca com DNA pernambucano

No samba carioca corre o DNA pernambucano, e quem atesta isto é João da Baiana (João Machado Guedes, 1887/1974), um dos pais do samba. Em entrevista à revista "Carioca", em 1939, foi-lhe perguntado se o samba era produto original do morro:

“Isso é conversa pra fazer lagartixa mudar de parede. O samba nasceu na Bahia, veio da terra de São Salvador aí, por volta de 1900. Trouxeram-no de lá o Hilário Jovino e o Tito Barãozinho, dois sambistas de quatro costados”, detalhou João da Baiana.

O Hilário Jovino citado por João da Baiana nasceu no Recife, foi para a Bahia já nos seus vinte e poucos anos. Jovino fundou um dos primeiros ranchos do Carnaval carioca, o Reis de Ouro, o primeiro a sair no Carnaval (até então saíam no Dia de Reis), o que mexeu no modelo da folia carioca.

Um detalhe pouco acentuado pelos historiadores do samba é que Hilário Jovino Ferreira inovou os ranchos acrescentando sopros à instrumentação. Sopros eram uma característica do Carnaval de rua do Recife.

O clássico "Pelo Telefone"

Aliás, Hilário foi uma das figuras primordiais do samba no Rio. Estava com a turma de sambistas que criou Pelo Telefone, uma colagem de quadrinhas nordestinas. Na gravação, foi assinada apenas por Donga e Mauro de Almeida.

Jovino era também compositor respeitado. Os ranchos se transformaram nas escolas de samba, alçadas à música da nacionalidade durante a ditadura de Getúlio Vargas (1930/1945). O samba ao estilo carioca veio dos batuques de negros, foi-se urbanizando, e miscigenando por volta dos anos 30, quando virou produto comercial, assimilado pela pequena classe média da capital federal.

Logo dominou o mercado da música no país, fomentado pela força da indústria cultural do Rio de Janeiro, onde se localizava a maioria das gravadoras e as principais emissoras de rádio. Os sambas de sucesso alcançavam rapidamente as principais cidades brasileiras, por partituras e pelos bolachões de 78 rotações.

As "turmas" do Carnaval do Recife

Nos anos 30, surgiram no Carnaval do Recife as “turmas”, assim chamadas porque não se encaixavam no modelo de agremiação comum à folia da cidade. Turma Boa, Turma Elétrica, Turma Quente são citadas nas páginas carnavalescas daquela década.

A Turma Quente, que chegou a ganhar marcha de Nelson Ferreira, em 1938, passou a se chamar Escola de Samba Turma Quente, com sede no Pina, depois em Água Fria.

Em 1966, quando as escolas de samba ameaçaram a hegemonia do frevo no Carnaval do Recife, Dona Conceição, antiga integrante da Gigantes do Samba, em matéria ao Jornal do Commercio fez um resumo da história da escola:

“Disse que a escola saiu pela primeira vez em 1937, com a denominação de Turma Quente, fundada no subúrbio de Água Fria por um grupo de rapazes: Waldomiro Silva, Guilherme Brás, Olímpio Ferreira da Silva, José Marques da Silva, Luís Ferreira Franco. Saímos batendo lata. Em 1938 desfilamos naquele subúrbio com outro nome: Garotos do Céu, passando em 1941 para a atual Gigantes do Samba. Em 1953, nos filiamos à federação, e em 54 subimos para o primeiro grupo, quando ganhamos o primeiro lugar. Entrou em 1962, na união das Escolas de Samba do Brasil”.

Tanto o samba quanto as escolas foram aceitos com ressalvas. Os zelosos guardiões do frevo viam o samba como um corpo estranho no Carnaval do Recife, embora os compositores não pensassem exatamente assim.

A primeira gravação de uma composição do “velho” Raul Morais é, provavelmente, de 1916, Iaiá me Diga, um 76 rotações (sic), cantado por Geraldo Magalhães. No rótulo do disco, o gênero é “samba carnavalesco”, o que daria a Raul Morais a primazia de ter gravado um samba antes de Pelo Telefone (Donga/Mauro de Almeida), de janeiro de 1917. Porém, assim como Pelo Telefone não é samba, e sim um maxixe, Iaiá me Diga está mais para uma embolada estilizada ou coco.

Em 1959, mesmo ano do seu disco mais bem sucedido, Capiba 25 anos de Frevo, Lourenço da Fonseca Barbosa estampa seu nome na capa de um LP de sambas, compostos por ele (com parceiros), Sambas de Capiba. Ambos com selo da Rozenblit/Mocambo, e interpretados por Claudionor Germano.

APOGEU DAS ESCOLAS DE SAMBA

A ascensão das escolas no Carnaval recifense deu-se em meados dos anos 50. Em 1956, foi realizado o primeiro festival de escolas de samba no Estado, promovido pela Sociedade Folclórica de Apipucos com a participação de 20 escolas, que além de sambas-enredos cantavam um hino regresso, influência da marcha regresso, entoada pelos clubes de frevo quando retornavam à sede depois de desfilar.

A Associação das Escolas se tornara poderosa a ponto de conseguir verba da Prefeitura do Recife para as suas afiliadas, o que deixou indignado o jornalista Mário Melo. Ele mandou uma carta ao prefeito Djair Brindeiro pedindo para que as escolas não fossem oficializadas no Carnaval da cidade. Não foi atendido, e deu por finda sua participação na federação, da qual foi um dos fundadores.

Mario Melo passou a escrever uma série de artigos virulentos e homofóbicos contra as escolas, “É melhor não termos o Carnaval de rua, o Carnaval tipicamente pernambucano, a vermos o samba imperando em nossos logradouros com aqueles indivíduos de sexo duvidoso e ademanes, que horripilam a dignidade masculina... Um Carnaval ao contrário das tradições de masculinidade pernambucana, com desajustados sexuais em vestes femininas, rebique na cara, beladona nos olhos, seios supostos, voz de falsete e ademanes suspeito, o que como noutros lugares, mas que horripilam homens e mulheres normais”. 

As escolas de samba de Pernambuco, em 1956, deram uma amostra do seu poderio, provocando elogios de Gilberto Freyre: “...talvez do encontro não fortuito, mas profundo do samba carioca com o frevo recifense resulte uma inesperada combinação nova, deliciosamente brasileira, de dança e de música”.

Dez anos mais tarde ele mudaria de ideia. Em 1954, por exemplo, um dos maiores sucessos do Carnaval foi Vou Gargalhar, na voz de Jackson do Pandeiro, do recifense Edgar Ferreira, compositor subestimado, autor de 17 na Corrente, Ele Disse Assim, Forró em Limoeiro e 1x1. Comunista, Edgar Ferreira foi um dos incentivadores e organizadores das primeiras agremiações de samba no Recife.

Em 1965, elas já saíam com 400, 500 integrantes. Em 1966, tinham encorpado-se de tal maneira que levou a norte-americana Katarina Real, muito influente nos círculos culturais recifenses na época, a alertar que o frevo corria perigo. A década de 60 foi o apogeu das agremiações de samba.

Os estudos de Katarina Real

No livro O Folclore no Carnaval do Recife, Katarina Real ressaltava que a classe média era favorável a essas entidades, e os próprios integrantes dos clubes de pedestres saíam nestes e nas escolas. Ela integrava a diretoria da Comissão Pernambucana de Defesa do Folclore, com Hermilo Borba Filho, Valdemar Valente e Valdemar de Oliveira, que criticavam a Comissão Organizadora do Carnaval (COC), pela benevolência com que tratavam as escolas de samba.

Estudantes de São José, em 1966, foi a vencedora na categoria, sob protestos dos diretores da Gigantes do Samba e queixas de dirigentes de agremiações de frevo. Pelos jornais, os cronistas carnavalescos assinalavam que a folia pernambucana estava cada vez mais carioca. Outro comentava que sem Vassourinhas, Maracatu Elefante e Batutas de São Jose (que não foram às ruas naquele ano), não havia Carnaval no Recife.

O sociólogo Gilberto Freyre alvejou as escolas num artigo para o Diario de Pernambuco, com o contundente título “Recifense, sim, subcarioca não". Escreveu: 'O Carnaval de 1966 decorreu sob este signo terrível: perigo de morte. É que o assassinou uma descaracterização maciça, através da invasão organizada, dirigida e, ao que parece, até oficializada, dos seus melhores redutos de pernambucanidade: a invasão das escolas de samba”. Na verdade, as escolas brilharam ainda mais  porque as agremiações que faziam o tradicional Carnaval entravam em declínio.

Sem esquecer o fato de que o samba estava em alta no país. As escolas cariocas passaram a ser atração turística internacional, o que refletia em sua congêneres recifenses. Enquanto isso, o samba, como gênero musical de meio de ano, tinha espaço no rádio e na TV da capital, e no catálogo da gravadora Rosenblit que, pelo seu selo Mocambo, lançou, a partir de 1960, discos anuais  e bem sucedidos comercialmente do bloco carioca Bafo da Onça.

Nos clubes carnavalescos, os foliões não faziam objeção ao samba tocado tanto pelas orquestras locais, quanto pelas carioca.

Capiba X Nelson Ferreira

“Nelson Ferreira não entende por que há tanto samba em Pernambuco”, título de uma matéria com o maestro, publicada no JC, no início de 1964 em que, entre outras críticas, dizia não entender a presença do samba nos clubes recifenses. Dias mais tarde, Capiba comprou a briga: “Capiba contrário às restrições de Nelson Ferreira ao samba no Carnaval”.

Até então os dois mais bem sucedidos compositores do estado eram considerados inimigos cordiais. O enfezado Capiba mandou a cordialidade para as cucuias. A briga nas páginas do JC estendeu-se até fevereiro.

Na década de 70, grupos de samba animavam casas noturnas, e antecipavam-se aos grandes eventos atuais que reúnem milhares de pessoas em torno do pagode.

Nos anos 80, não mais se discutia a origem do frevo. Nos anos 2000, o samba está enraizado em Pernambuco, do Preto Velho, no Alto da Sé, às rodas de samba promovidas por Karynna Spinelli e seus convidados, no Morro da Conceição, ou no pagode do Didi, na Ulhoa Cintra, no Centro da cidade.

Chico Science

Tido como um movimento roqueiro, de miscigenação rítmica, o manguebeat comungava de muitas afinidades com o samba. A Mundo Livre S/A deu o título de Samba Esquema Noise ao seu disco de estreia (de 1995), Otto estreou solo com Samba pra Burro.

Por sua vez, Chico Science definia o que fazia como samba. “A gente revisita o samba, que é uma coisa africana que se espalhou pelo Brasil, numa concepção mais ampla: tem o samba de maracatu, de caboclinho, de cavalo-marinho, do morro, do bumba-meu-boi, com elementos árabes, holandeses, de índios, espanhóis, de toda a miscigenação brasileira ... tudo no Brasil no fundo é samba ... É uma espécie de pai musical do Brasil. Quase todos os gêneros musicais do Brasil devem alguma coisa ao samba”, dizia o mangueboy, autor de Samba Makossa

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