Em junho de 1964, os jornais brasileiros deixaram em segundo plano o golpe que levou os militares ao poder em 1º de abril para se ocupar de um mistério.
A morte de um mainá, pássaro indiano, que o ponta-direita Mané Garrincha recebeu de presente de Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara (o Estado era a cidade do Rio de Janeiro), líder civil do movimento que derrubou o presidente João Goulart, cujo apelido, por sinal, era O Corvo.
O mainá foi estrangulado, alguém o matou na madrugada de 20 de junho daquele ano, informava a imprensa, sem revelar nome nem dar pistas. Quem poderia abrigar tanta maldade no coração?
Perguntavam-se todos, comovidos com a dor do ponteiro, que ganhou o mainá quando se sagrou bicampeão do mundo, em 1962, no Chile.
A verdade sobre a noite em que o pássaro morreu, é um episódio menor na atribulada vida de Elza Gomes da Conceição, a cantora carioca Elza Soares, contados na biografia Elza, escrita por Zeca Camargo.
“... até que numa noite a coisa foi realmente feia", diz ela, se referindo ao episódio na noite de 20 de junho de 1964, na qual um grupo do Dops invadiu a casa deles ou pelo menos, eles diziam que eram do Dops, Departamento de Ordem Política e Social, órgão do governo famoso pela sua brutalidade.
Eles entraram de madrugada sem pedir licença. Tudo foi calculado pra não se saber o que fazer. Chegaram gritando, dizendo pra todo mundo sair dos quartos. ‘Põe a mão na parede! Põe a mão na parede!' Falavam aos berros.
Todo mundo estava dormindo, então você imagina o susto? Garrincha demorou a entender o que estava acontecendo e sua primeira reação foi acalmar a própria Elza.
"Ele ficava dizendo pra eu me controlar, que aqueles caras eram gente boa. 'Que gente boa, Neném, é gente ruim que tá aqui. Você acha que gente boa ia fazer a gente andar pela nossa casa de pijama, a essa hora da noite, com as mãos pra cima?’ Dois deles ouviram e jogaram aquele olhar de ódio sobre mim. Achei melhor ficar quieta", ela conta.
Na biografia da cantora, Elza Soares revela que esse momento foi aterrorizador: "Mané ainda tentou pedir pra que eles deixassem as mulheres, eu, minha mãe e Dilma, voltarem pro quarto. Foi assim como se ele não tivesse falado nada. Reviraram tudo, deixaram a casa de pernas pro ar e foram embora. Não sem antes um deles passear pela sala principal, abrir a gaiola torcer o pescoço do mainá, matando o xodó de Garrincha.”
Os homens do Dops foram à casa, na Ilha do Governador, em que moravam Elza Soares, Garrincha e parentes da cantora, certamente pela ligação que ela mantinha com o presidente derrubado. Elza era uma das preferidas de João Goulart, falavam-se pelo telefone, ele a convidava a cantar em festas que dava em sua casa no Rio.
Elza Soares, por sua vez, participou, com vários artista do rádio, da gravação de um jingle (composto por Miguel Gustavo) para a campanha de Jango em 1960. Por fim, estava no palanque do histórico comício de Jango na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964.
Na época, Elza Soares tinha dedo apontado em sua direção como destruidora de lares. Mané Garrincha deixou mulher e filhas para morar com a cantora, que conheceu quando ela foi ao Chile cantar para a seleção brasileira.
Vulcão Elza Soares
A vida de Elza Soares assemelha-se a um vulcão que se julga adormecido e que, súbito, entra em erupção. A idade? Zeca Camargo não se preocupou com o ano em que a cantora nasceu. O projeto foi tocado com ajuda de Juliano Almeida e Pedro Loureiro: “Essa é uma questão menor - 23 de junho de 1930? 1931? 1935? A idade não importa”.
Ela teve uma biografia, bastante elogiada, pela contundência assinada pelo escritor maranhense José Louzeiro, Cantando para não enlouquecer (1997). A do jornalista Zeca Camargo chega a passagens chocantes.
Elza Soares o escolheu como biógrafo e abriu-se para ele, nos mínimos detalhes. Até porque com 88, 85, ou 83 anos, não tem motivo para ocultar nada.