Na música pop, há um momento em que um grupo seleto de cantoras atinge uma fase imperial, na qual capturam o zeitgeist, seja por abordagem questões políticas de forma direta ou mesmo por providenciarem hits escapistas em momentos de desalento. Só para ficas nas últimas duas décadas podemos citar Beyoncé, Lady Gaga, Katy Perry e Taylor Swift, e, se formos mais atrás, Madonna, Janet Jackson e Whitney Houston. Atualmente, esse posto pertence a Ariana Grande, que desde o ano passado tem dominado as paradas de sucesso, além de conquistar crítica e uma legião de admiradores. Prova de seu poder é que, menos de seis meses depois de lançar o aclamado Sweetener, a norte-americana disponibilizou sexta-feira seu quinto disco, Thank U, Next.
Os últimos dois anos foram intenso para Ariana Grande. Se até 2016, quando lançou o Dangerous Woman, ela era mais uma estrela promissora, saindo da adolescência, em 2017 sua figura pública começou a ganhar outros contornos. Em maio daquele ano, um ataque terrorista na saída do seu show em Manchester, na Inglaterra, deixou 23 mortos e 139 feridos. O episódio traumatizante foi tratado pela artista com maturidade e resiliência admiráveis para uma jovem à época com 23 anos.
Ariana afirmou que apesar da dor, não era possível sucumbir ao medo porque era justamente esse o objetivo do ataque. A artista promoveu um concerto beneficente para arrecadar fundos para o fundo de emergência da cidade e, na ocasião, fez rendições emocionante de Somewhere Over The Rainbow e da sua One Last Time, lutando contra as lágrimas, que instantaneamente se tornaram símbolos de força e graciosidade diante do horror.
O processamento dessas experiências estão impressos em Sweetener, disco fora da curva, mais denso e experimental, marcado ainda pelo fim de seu relacionamento com o rapper Mac Miller e uma paixão fulminante pelo comediante Pete Davidson, com quem noivou com menos de um mês de namoro. O álbum é marcado por um otimismo sem ingenuidade, como alguém que honra suas cicatrizes e tenta crescer com ela, como fica explícito em faixas como No Tears Left To Cry e Breathin.
Neste período, a figura de Ariana enquanto ícone feminista também foi se consolidando. A cantora rebateu vários comentários misóginos em suas redes sociais e em entrevistas e exaltou a força feminina na canção God Is a Woman, com a qual concorre ao Grammy de Melhor Performance Pop Solo.
Além dos hits e de vender milhões de álbuns, Ariana também conquistou a crítica especializada, que várias vezes ressaltou que ela estava construindo um projeto artístico mais ambicioso e consistente do que seus contemporâneos. O disco figurou nas listas de melhores do ano das principais publicações de música do exterior.
Mas, se a vida profissional estava deslanchando, a pessoal continuava conturbada. Seu ex-namorado, o rapper Mac Miller morreu vítima de overdose em setembro do ano passado. Ariana, que sempre buscou ajudar o artista, mesmo depois de separada, novamente se recolheu e disse que daria um tempo na carreira.
O noivado com Pete Davidson acabou no mês seguinte e os fãs já cogitavam – compreensivelmente – que ela fosse dar uma pausa na carreira. Foi então que em novembro, quase de surpresa, ela lançou o single Thank U, Next. A faixa, uma mescla de pop e r&b, aborda todos os seus relacionamentos passados, sem mágoas.
Nela, Grande agradece a todos os seus ex-namorados, ressaltando os aprendizados que teve com cada um. “Achei que ficaria com Sean, mas ele não era um match/ Escrevi umas músicas sobre Ricky, agora eu ouço e eu rio/ Até quase me casei, e por Pete eu sou tão grata/ Gostaria de poder dizer obrigada a Malcolm, porque ele era um anjo”, canta, ressaltando, no final, que no momento se encontra no melhor dos relacionamentos: com ela mesma.
LEVEZA
Essa paixão recentemente descoberta por si dá o tom do novo álbum. Nele, Ariana Grande soa destemida, aberta. O álbum abre com Imagine, faixa que e transmite a excitação dos primeiros encontros, quando tudo parece possível. O ápice chega quase no final, quando ela engata nos melismas à la Mariah Carey, sua grande inspiração.
Dona de uma voz poderosa, a cantora aparece contida neste álbum, dialogando diretamente com o r&b, o trap e o hip hop. O disco tem um tom confessional, como em Needy, na qual ela admite suas carências.
Na ótima Fake Smile, com uma pegada ska, ela volta a falar de suas questões mais íntimas. “Leio as coisas que eles escrevem sobre mim/ Está ficando mais difícil para eles me chocarem/ Mas de vez em quando, é chocante, não me culpe/ Sei que é a vida que escolhi/ Mas, baby, sou feliz por todo o amor/ Se é para ser honesta, realmente eu passei por muita coisa/ Não posso fingir outro sorriso/ Não posso fingir que estou bem”, confessa.
Em NASA, ela subverte as famosas palavras ditas por Neil Armstrong ao pisar na lua e põe uma gravação que avisa: “É um pequeno passo para as mulheres, mas um passo gigante para a ‘mulheridade’”. Na delicada Ghostin, ela parece estar se referenciando a Pete Davidson e Mac Miller, ao afirmar que entende ser difícil para seu parceiro vê-la chorando por outro.
Mais desbocada e confiante, ela se permite o hedonismo em faixas como 7 Rings, Bad Idea, Bloodline, In My Head, Break Up With Your Girlfriend, I’m Bored. São canções com batidas marcantes, mas que fogem do pop chiclete de hits anteriores, flertando com os ritmos urbanos.
Em Thank U, Next, Ariana não nega o peso de suas experiências, nem oferece uma visão Pollyana da vida. Ela parece mais interessada em tomar as rédeas de sua vida, buscar a leveza e, a despeito de tudo, ser feliz. Ela não quer ser uma guru ou expressar mais maturidade do que seus 26 anos. É uma postura admirável, ainda mais diante do cenário mundial, carregado. E, vindo da artista pop mais relevante do momento, tem um impacto que, quem sabe, pode ajudar a amenizar esse peso ao qual ninguém está imune.