Disco

The Social Power of Music: a canção pode ser um arma

Caixa com quatro discos traz músicas de vários países

JOSÉ TELES
Cadastrado por
JOSÉ TELES
Publicado em 16/03/2019 às 10:19
Foto: divulgação
Caixa com quatro discos traz músicas de vários países - FOTO: Foto: divulgação
Leitura:

A música tem o poder de aproximar as pessoas e de levá-las a abraçar outras pessoas ou uma causa. The Social Power of Music (O Poder Social da Música), compilação do Smithsonian Folkways Records, reúne 80 faixas, ressaltando a força que a música exerce na sociedade e sua presença nos mais diversos momentos e ações do ser humano. Uma coleção de canções de trabalho, de festas, religião ou protesto, abrangendo várias décadas, erigindo uma ponte entre o presente e músicas do século passado, comprovando que determinadas situações e reivindicações são atemporais.

 A maioria é do cancioneiro dos Estados Unidos. No disco 4, cuja temática são as migrações, a música vem de diversos países. Vem também do Brasil, com Funeral do Lavrador, de Chico Buarque/João Cabral de Melo Neto, interpretada pela pernambucana Zélia Barbosa (extraída de um álbum gravado na França em 1968). Ela é, aliás, a única artista do Brasil nesta coletânea, muito oportuna pela polarização política que se dissemina pelo planeta.

 O Disco 1 está recheado de canções que se tornaram hinos do movimento pelos direitos civis e das marchas de protesto na segunda metade da década de 60. O repertório abre com a obrigatória com We Shall Overcome, com os Freedom Singers. Originalmente um spiritual, ou seja, música religiosa, We Shall Overcome teve seu contexto expandido e se presta a várias situações. A frase “Nós superaremos” pode ser usada para uma fatalidade pessoal ou um governo tirano, que atinja uma comunidade ou o país inteiro.

 Algumas dessas canções, em outros idiomas, tornaram-se mero entretenimento, caso de If I Had a Hammer, que passou do protesto ao twist com a cantora pop italiana Rita Pavone, virando o hit Date me un Martelo. Boa parte do repertório de O Poder Social da Música pode ser contextualizada para o momento político atual, de extremos e paroxismos. Um exemplo é a ameaça de construção de um muro dividindo milhões de pessoas, pretensão do presidente de um país cujos governantes, num passado não tão longínquo, tornaram sua bandeira de luta o muro que dividia Berlim, na Alemanha.

A problemática da imigração reflete-se na canção Deportee (Plane at Los Gatos), de Woody Guthrie: “Adeus meu Juan, adeus Rosalita/adeus meus amigos, Jesus e Maria/Vocês não mais terão nomes/quando estiverem no grande avião/Eles tratarão você apenas por deportados”. Um apanhado de canções que nos leva a constatar que o mundo sempre foi assim e, pelo que se vê ao redor, periga piorar: “Se a gente decide caminhar sozinha/pra nós não há zona de conforto/se somos agredidas a culpa é nossa/vão dizer que a gente foi que começou”, versos que poderiam ser ditos por uma rapper de hoje, mas está em Reclaim the Night, de Peggy Seeger, cantora e compositora americana.

 Aos 84 anos, bastante atuante, ela vem de uma família de musicólogos cujo nome mais conhecido é Peter Seeger, assim como ela, uma lenda da música folk e de protesto. Tão importante no movimento pelos direitos civis nos EUA que aparece nesta caixa com três faixas. Peggy tem direito a outra canção, com o marido, o inglês Ewan MacColl.

 ABRANGENTE

 A curadoria do projeto expandiu os horizontes do repertório, incluindo, por exemplo, De Colores, canção que normalmente se liga a sindicatos de trabalhadores agrícolas, sendo popular na Espanha, mas também no México, de onde se origina. Em Social Power of Music ela é interpretada por Baldemar Velásquez, Aguila Negra. Música é bálsamo e arma pacífica, conforta e protege, e aí independe de cor da pele, gênero, continente. Esta coleção tem no grego Mikis Theodorakis, que combateu a pesada ditadura militar em seu país, um dos mais conhecidos militantes pelos direitos humanos. O não menos combativo francês Yves Montand entra na compilação com a clássica Le Temps des Cerises (O tempo da cerejas), que remonta à  comuna de Paris, em 1866. A canção recebeu diversas letras, a que se fixou foi a que Montand gravou em 1967.

 No CD dedicado às migrações tem ainda uma faixa com sul-africanos refugiados em Tanganica (atual Tanzânia), ou de um grupo de cantores da MPLA (Movimento Pela Libertação de Angola). Ainda de Angola, a cantora Lilly Tchiumba. O disco é ainda mais abrangente ao trazer para o repertório o rock da contracultura dos anos 60, com I Feel Like I’m Fixin to Die Rag, de Country Joe & The Fish, canção quase imediatamente incorporada às marchas de protesto contra a guerra do Vietnã (escutada logo no início do documentário sobre o festival de Woodstock).

 Esta caixa do Smithsonian Folkways ratifica que, mesmo quando alienada, música tem sempre a ver com política. O rapper mais irascível, vociferando contra as mazelas de uma sociedade desigual, é tão político quanto o funk do MC que propaga as qualidades libidinosas da novinha.

 

Últimas notícias