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Jorge Mautner entre a perplexidade e a indignação

Marielle Franco foi uma de sua inspirações

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 13/04/2019 às 22:39
foto: divulgação/Gustavo Peres
Marielle Franco foi uma de sua inspirações - FOTO: foto: divulgação/Gustavo Peres
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“Ela era filha de gente exaltada e que bebia fogo. Os pais e a família dela eram fortes e unidos e profundos. Profundos na grandeza de seu olhar, profundos no amor e profundos na guerra. Eles sabiam odiar e cantar e chorar com sinceridade. Eles eram patéticos mas eram gloriosos. Eles eram que nem troncos de velhas e novas árvores escuras dentro de uma floresta de plantas e musgos também escuros. As plantas e os musgos eram o ambiente e os troncos velhos e novos eram eles. Cada folha da floresta, cada planta, cada musgo era uma parte do todo e os troncos eram eles, os antepassados e pais gloriosos dela que só podiam ter vivido nesta floresta porque cada folha, cada planta, cada musgo também era parte deles como eles eram parte de tudo”.

 O trecho acima foi pinçado da introdução do romance de estreia de Jorge Mautner, Deus do Sol e da Chuva, publicado em 1962, que lhe deu o Prêmio Jabuti de Revelação Literária. Obra rara, o livro será relançado ainda neste mês de abril pela editora Azougue. O primeiro de seis títulos de Mautner que ganharão reedições. Mautner também será tema de uma minissérie biográfica Kaos em Ação, com roteiro de João Paulo Reys, ainda sem data de exibição confirmada, pelo canal por assinatura HBO.

Aos 78 anos, o recluso Jorge Mautner, morador da parte mais sossegada do Leblon, sem lançar disco de estúdio desde Riverão, de 2006, mandou, nessa sexta-feira, às plataformas digitais, com selo Gege/Deckdisc, o álbum Não Há Abismo em que o Brasil Caiba (terá edição em vinil pelo Noize Record Club). Parece um corolário de um aforismo popular “O Brasil só não cai no buraco porque é maior que o buraco”. Mas vem do filósofo português Agostinho da Silva (1906/1994), num comentário sobre a crise do governo Collor. A frase na íntegra: “O Brasil tem um destino tão grandioso, tão grandioso, que não tem abismo que o caiba'.

 O carioca Henrique George Mautner, filho de mãe polonesa e pai judeu austríaco, que vieram para o Brasil fugindo do nazismo, cresceu em São Paulo. Aos 15 anos começou a escrever o citado romance, e em jornais e revistas culturais, entre estas a Senhor, em cujo expediente figuravam Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos (a revista circulou de 1959 a 1962). Em 1964, assinava a coluna Bilhete do Kaos na edição paulista do Última Hora.

 Com o golpe, Jorge Mautner, comunista de carteirinha, teve uma passagem pela prisão, em Barretos, interior de São Paulo. Em 1965, influenciado pela Jovem Guarda, virou roqueiro e lançou um compacto pela RCA, acompanhado pelos The Vikings. A faixa Radioatividade falava em bomba atômica, guerra mundial (no lado B a canção Não, Não, Não). No mesmo ano, publicou o livro Vigarista Jorge, que o levou a ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Mautner foi para o exterior. Conheceu a turma do tropicalismo, em 1970, em Londres. O resto, é história, e que passou por Pernambuco, com a versão, em 1996, de Chico Science & Nação Zumbi e Maracatu Atômico, canção lançada por Gilberto Gil em 1974.

 ABISMO

 Não Há Abismo em que o Brasil Caiba foi realizado com a banda carioca Tono, formado por Bem Gil, Rafael Rocha, Bruno Di Lullo e Ana Lomelino. O cantor e a banda apresentam-se juntos há seis anos. Este é o álbum de Jorge Mautner que mais se aproxima da MPB convencional, por isto mesmo é o mais inusitado de uma obra que flerta com o nonsense em certos momentos (Queria Ser Locomotiva, de 1972), ou com o surrealismo (Vampiro, composta em 1958, gravada por Caetano Veloso em 1979). Confirmando o inusitado, pela primeira vez num disco, Mautner canta se acompanhando ao violão, em Destino. Filosofia, psicanálise, candomblé, astrologia, teogonia, são muitos os temas que ele abordou em sua música, mesmo quando cantava sobre super-heróis feito em Herói das Estrelas, lançada por Gilberto Gil em 1974 (ano que o próprio Mautner também a gravou). Uma das muitas compostas com Nelson Jacobina, parceiro de uma vida (faleceu em 2012).

 Porém nunca foi tão direto ao alvo quanto em Marielle Franco. Os primeiros, e incisivos, versos escritos na mesma noite em que mataram a vereadora e ativista carioca: “É preciso exterminar/ a doença mental, física e assassina/do racismo, do antifeminismo/ e do neonazismo/ que matou Anderson Gomes/ e que matou Marielle Franco”. O samba, de 1m47s, é um libelo furioso como jamais Jorge Mautner o fez antes. Se bem que neste disco ele canta até o demo, no samba O Diabo: “Muitas vezes ele encarna em seres humanos desumanos/como Adolf Hitler”.

 Porém não se espere um Mautner cartesiano nos 76 minutos do álbum. O samba Bang Bang mistura redistribuição de renda com o abolicionista Joaquim Nabuco. A reunião com a Tono renova a música e a sonoridade de Mautner que cai no rock em Oy Vey Oy Vey (com João Paulo Reys), que tem alguma coisa de Bob Dylan, de New Orleans. O emaranhado de ideias que se entrelaçam nas letras se sustentam em melodias montadas com três ou quatro acordes, reforçadas por ritmos variados. A Tono capricha nos arranjos. Segredo, por exemplo, começa em levada de maracatu de baque virado que, aos poucos, resvala entre o samba: “O segredo é irmão do mistério e do enigma/a chave do enigma é outro enigma/e assim por diante/num fim sem fim”, declama Mautner, com corinho da Tono, sobressaindo-se a voz suave da cantora do grupo, Ana Lomelino.

 O autor de Maracatu Atômico, canção que o ligou a Pernambuco, pela gravação antológica do CSNZ, em 1996 conheceu uma nação de maracatu em 1954, no aniversário do quarto centenário de São Paulo, “Trouxeram músicas de todos os estados, vi um maracatu e fiquei louco”, comenta Mautner que em 2006, foi com Nelson Jacobina ao festival Canavial, quando conheceu também o maracatu de baque solto, e foi homenageado em Nazaré da Mata.

 Ao longo das 14 canções, ele presta homenagens, Ruth Rainha Cigana foi feita para a companheira de 50 anos, mãe da filha Amora. Para Preta Gil fez o Bloco da Preta Gil. Alude ao quiproquó da educação no país, celebrando a professora Catulina, que percorria léguas no lombo de burrico ensinar crianças a ler.

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