Disco

Ave Sangria canta as canções do cárcere

Canções do passado que refletem o presente

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 27/04/2019 às 9:30
Foto -Flora Negri/Divulgação
Canções do passado que refletem o presente - FOTO: Foto -Flora Negri/Divulgação
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“Naquela época éramos jovens e os mais velhos encarceraram nossa obra musical. Agora somos mais velhos, e os jovens nos libertaram do cárcere cultural”. Assim Almir de Oliveira resume a história do Ave Sangria. Surgida em 1971, como Tamarineira Village, o grupo, já com nome mudado, gravou um álbum, em 1974, no Rio, para a gravadora Continental. Meses depois, o LP foi proibido pela Censura Federal, por causa da faixa Seu Valdir.

 Quando o álbum foi recolhido, era a oitava música mais tocada nas paradas cariocas. “Seu Valdir, em uma semana, passou do décimo segundo para o oitavo lugar. A proibição lascou tudo. A gravadora fez contrato com a gente para dois discos. Depois do prejuízo com a proibição, não se falou mais em outro. Quando fizemos aquele show em 1974, a gente já sabia que não ia continuar. Não tínhamos condições de começar tudo de novo, sem instrumentos, sem disco, sem gravadora”, conta Almir.

 O concerto a que Almir de Oliveira se refere foi o Perfume y Baratchos, realizado nos dias 28 e 29 de 1974, no Teatro de Santa Isabel, que sairia em disco 40 anos depois, juntamente com a reedição do álbum proibido. O grupo retornou ao teatro para lançar os dois discos, algo que um anos antes não passava pela cabeça dos integrantes. Muito menos imaginar que lançariam um álbum de estúdio em 2019.

 O disco, intitulado Vendavais, chegou ontem às plataformas digitais. A capa é assinada por Neilton, artista plástico e guitarrista da Devotos. As canções fizeram uma viagem pelo túnel do tempo. Os músicos que tocam agora com Almir de Oliveira, Marco Polo e Paulo Rafael, (remanescentes do Ave Sangria) são Juliano Holanda, Gilu Amaral e Júnior do Jarro, que nem eram nascidos quando este repertório foi composto.

 “Estas músicas foram feitas naquela época. Uma é de 1969, Sete Minutos, e o restante até no máximo 1974. A gente entendeu que o público está mergulhado no que vivemos. Achamos justo que colocássemos músicas daquela fase. Quando terminamos a banda, só quem não compunha era Agricinho. Eu, Marco, Paulo, Israel, Paulo e Ivinho, então, temos muito material. Fizemos seleção para este disco, tem muito mais, temas instrumentais, trechos de outras músicias”, explica Almir de Oliveira.

 Se o repertório está enquadrado na década de 70, os integrantes foram modificados pelo tempo, de forma particular. Almir, depois do fim do Ave Sangria, continuou fazendo música, mas ganhando o sustento com engenharia, curso que tinha abandonado e retomou em 1976. Marco Polo entrou em carreira solo, mas retornou ao jornalismo nos anos 80, enquanto Paulo Rafael toca com Alceu Valença há 44 anos, com um trabalho solo extenso, de discos a trilhas sonoras e produção. Agricinho, Israel Semente e Ivinho, faleceram, em época diferentes. Ivinho ainda participou do novo vôo do Ave Sangria em 2014.

 “O link que faço entre este disco e o primeiro é que trazemos novas experiências para o estúdio. Paulo Rafael, por exemplo, acrescenta à banda o que desenvolveu neste período. A sonoridade do disco tem tudo a ver com o que desenvolvemos ao longo desses anos. Se fosse colocar músicas minhas, feitas agora, seria muito diferente esteticamente”.

REPRESSÃO

 Ressalte-se que são ambientes bastante diversos. Há 45 anos, vivia-se sob uma ditadura militar implantada há uma década. As letras canções de Vendavais, as que foram apresentadas em shows do Ave Sangria, tiveram que ser previamente submetidas ao crivo dos censores. “Quem diz que não houve ditadura naquele tempo é porque não estava do mesmo lado que a gente, ou não estava lá. Além de mandar as letras para aprovação, a gente tinha que fazer um show pra Polícia Federal. Ainda levavam a letra, pra ver se a gente cantava igual a que foi aprovada. Até os cartazes passavam pela censura estética”, lembra Almir. Mas a opressão não ficava na burocracia da censura:

 “Uma vez, eu estava na casa de Ivinho, na Vila dos Comerciários, domingo de manhã, quando minha mãe chegou chorando. Disse que entraram dois homens lá em casa e reviraram meu quarto de cabeça pra baixo. Fui lá e tudo se encontrava jogado. O que havia no guarda-roupa estava no chão. Em outra ocasião foram à casa de Marco Polo para avisar que ele tinha que ir na Polícia Federal, o que também aconteceu com Lula Côrtes”.

 O que colabora para que as canções do novo disco pareçam ter sido compostas recentemente é o conservadorismo que os vendavais sopram mundo afora. “Eu tenho medo/ por mim e por vocês/ e pelo que vem depois do fim/ Vejam o poeta suicidou-se de repente/ deu um teco na ideia/ já estava demente/ quando anunciou” – os versos de O Poeta não poderiam ser mais incisivamente atuais. O Marginal, faixa de Vendavais, ganhou status de cult nos anos 70, quando era conhecida apenas de shows (foi tirada do ineditismo em 1987, no disco Cena de Ciúme, de Geraldo Maia e Henrique Macedo).

A canção parece que anteviu os tempos de agora. Se há 50 anos a falta de perspectiva levava ao desbunde, hoje conduz à marginalidade. O grupo teve bastante tempo para se submeter ao teste do segundo disco. E passou com méritos. Se o repertório de Vendavais fosse o do LP de estreia, a banda teria se tornado lenda da mesma forma, mesmo com a produção tecnicamente tosca do que foi gravado na Continental, num estúdio canhestro de então. A sonoridade de Vendavais é brilhante. Os solos de guitarras na faixa título são primorosos. Igualmente em Dia a Dia, que soa como se o Ave Sangria fosse seu próprio Greta Van Fleet (nova banda americana comparada ao Led Zeppelin). Um hard rock como não se faz mais.

 Almir canta Olho da Noite, de Marco Polo, no ponteio da viola, lembrando a sonoridade de Paêbirú, de Lula Cortes e Zé Ramalho, que vem antes de Carícias, uma balada pop, com letra impregnada de sensualidade. Esta a faixa mais radiofônica do disco, que termina, assim como o primeiro, com um tema instrumental, Órbita, de Paulo Rafael. Um álbum surpreendente, não só pela qualidade, mas por toda história que o envolve.

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