“Trata-se de um disco instrumental em dois canais (recurso da época), com Lula no tricórdio, cujo som natural do aço e reverberações produzem um resultado semelhante ao da cítara indiana, Laílson na viola de doze cordas (gravado na Rozenblit e produzido pela Abrakadabra, produtora de Lula Côrtes), em Recife. Foi a primeira tentativa de aliar-se o elemento oriental ao nordestino, proposta que se reflete em trabalhos posteriores”. Um resumo de Satwa, disco gravado por Lula Côrtes e Laílson Holanda, em 1973.
O texto, manuscrito, foi entregue por Lula numa de suas primeiras entrevistas nos anos 1990, quando voltou aos palcos. Falecido em 26 de março de 2011, Lula Côrtes completaria 70 anos hoje e certamente daria uma festa com muito rock and roll, de preferência, Rolling Stones, que dizia ser seu grupo preferido. Sua canção predileta do grupo era Sister Morphine, do álbum Sticky Fingers (1971). Estaria também satisfeito pelo relançamento de Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol, dividido com Zé Ramalho, em 1975, com participação de quase todos os que faziam a cena psicodélica pernambucana dá década de 70.
Mas nem precisaria interromper a pintura de uma tela, a composição de alguma música, ou de escrever mais um poema. Não faltarão festas a Lula hoje. Na Peixaria de Candeias, o movimento #ocupepeixaria vai literalmente tomar o local a partir de 15h, com o Som da Rural e as seguintes atrações: DJ Veloodoo, apresentação de RAP, Marília e Juvenil, Luciano Teixeira e Fábio Lupo; Salim + Pita Cavalcante + Tiago Lima, Renato L, Sarau com os Quatro Grupos e Ana Rosa, Mavi Pugliese, Xandinho (Má Companhia), Allen Jerônimo e Grupo Rala Coco Maria, de Igarassu.
O objetivo do movimento, além de celebrar o aniversário do artista, é transformar o espaço em um equipamento cultural para o bairro e rebatizá-lo de Peixaria Lula Côrtes. O local, atualmente degradado, foi ponto de encontro de artistas de Candeias, inclusive do próprio Lula Côrtes, frequentador assíduo da peixaria. Infelizmente, vândalos depredaram a escultura do artista na calçada em frente à peixaria. As celebrações não param por aí. Na Várzea, sábado, 11, tem mais.
A partir de 18h, será exibido o documentário Lula em Cortes, com um papo com o diretor Marcos Santos. Estará lá também com o poeta e colecionador de histórias de Lula, Luiz de França. Em meio a uma discotecagem udigrudi, acontecem os shows de Xandinho (Má Companhia), Allen Jerônimo, Aninha Martins e Jonatas Onofre, Publius, Miguel Marinho e Felipe Weinberg. Ressalte-se que a celebração foi organizada pela Rede Lula Córtex, na base da independência, e alguns apoios, entre os quais da República Independente da Várzea, Cervejaria Carrancuda, Fuah – Serigrafia e Artes e Editora Titivilus.
TALENTOS
Lula Côrtes é lembrado mais pela música, mas apareceu inicialmente com a pintura e a poesia. Em 1970, era constantemente citado como um dos nomes promissores da vanguarda artística do Recife. Lançou livros com concepções ousadas de Kátia Mesel, fez exposições, até que a música foi mais forte. Depois de Satwa, Lula e Kátia criaram a Abrakadabra, e incentivaram a gravação dos discos da fase psicodélica pernambucana, cuja obra maior foi o citado álbum duplo Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol, dividido com Zé Ramalho (lançado oficialmente em 1976).
A carreira dele foi interrompida em 1980, num imbróglio jurídico entre a Rozenblit e a Ariola. Lula tinha acabado de gravar o álbum solo Rosa de Sangue quando foi convidado para fazer um disco na Ariola, multinacional recém-chegada ao Brasil, com dólar pro que desse e viesse. O Gosto Novo da Vida, gravado por Lula na Ariola, começava a decolar, quando a Rozenblit acionou a gravadora alemã, que retirou o disco de circulação. A gravadora pernambucana, por sua vez, engavetou o Rosa de Sangue.
Lula Côrtes, nos anos 90, tornou-se ídolo da nova geração de músicos do Recife. Xandinho, da Má Companhia, o conheceu em 1990, no Sushi Bar, de Marcelo Mesel. Foi o início de 21 anos de convivência e dois discos, Lula Côrtes e Má Companhia e A Vida Não É Sopa: “A gente tocava no Sushi Bar quando Lula se aproximou e, mesmo sem saber inglês, cantou Stand by Me, com a banda. E depois convidou a gente pra acompanhar ele. Fomos parceiros numa música, Balada Cavernosa, que está em A Vida Não É Sopa”, conta Xandinho.
Lula continuou influenciando e incentivando músicos nos anos 2000, caso de Juvenil Silva, que o conheceu no programa Sopa Diário, de Roger de Renor: “Ele foi um divisor de águas em relação à elegância, à postura, ao jeito de ser. Aquele ar de intelectualidade, ao mesmo tempo de rebeldia e loucura. A gente ia tomar umas num bar em Candeias. Ele contava histórias, falava do Paêbirú, foi ali que vi que queria seguir os caminhos traçados por ele, só que do meu jeito”, comenta Juvenil.