Há 60 anos, uma das canções mais tocadas no Brasil intitulava-se Diana, interpretada pelo mineiro (de Paraisópolis) Carlos Gonzaga. A música é de Paul Anka, ídolo do rock americano na época, e aqui ganhou versão do paulista (de Tietê) Fred Jorge. Não se sabe bem o motivo, mas o versionista preferiu deixar na letra um trecho em inglês, “only you” (“só você”) que poderia ser traduzido sem deixar versos de pé quebrados.
“Only you pode fazer-me feliz/only you é tudo aquilo que eu quis”. Muitas brasileiras foram batizadas de Diana por causa da música. Embora em número menor, há pessoas que ganharam o nome pouco comum de “Onliu” por culpa da letra que Fred Jorge fez para Diana. Foi mais ou menos isso que fez Paula Fernandes na versão que gravou de Shallow, canção que Lady Gaga e Bradley Cooper gravaram para a trilha do filme Assim Nasce Uma Estrela. Assinada por ela, Mark Ronson, Anthony Rossomando e Andrew Wyatt.
Shallow ganhou o Oscar de Melhor Canção em 2018. A mineira Paula gravou sua versão com o mato-grossense Luan Santana, revestindo-a de roupagem sertaneja. Versão que está dando o que falar por causa do refrão ininteligível, “Diga o que te fez sentir saudade/Bote um ponto final/Cole de uma vez nossas metades/ Juntos e shallow now”. O “Juntos e shallow now” ficou tão confuso que o single viralizou na Internet. Em inglês “shallow” é raso. Na letra original ouve-se “We’re far from the shallow now”, grosso modo, “Estamos longe da parte rasa agora”.
O portuinglês da versão brasileira rendeu até entrevista com a cantora, para o site G1 carioca. Ela revelou que tinha acabado de subir para um quarto do hotel, no Rio, depois de participar da festa de aniversário da promoter Carol Sampaio. A letra foi concluída em cerca de duas horas. Ela confessa que até pensou em substituir o “shallow” por uma palavra em português, mas preferiu mantê-la por ser muito forte. E explica-se: “Não é uma tradução, é uma versão adaptada”.
FOREVIS
Fred Jorge formou com Nazareno de Brito e Rossini Pinto o trio de principais versionistas dos primeiros anos do rock and roll no Brasil. Ele cometeu outros “only you”. Um destes foi em 1961, ao fazer a versão de Forever, gravada como Eternamente, por Roberto Carlos, no LP Louco por Você. Bem que poderia deixar o “forever” de fora, e trocá-lo por “para sempre”, sem causar problemas à letra. A primeira estrofe termina com os versos: “No mundo inteiro/ Em qualquer lugar o meu amor será/ Seu, forever”, Aliás, o “forever” já surge no primeiro verso: “Forever é para sempre”.
Em 1961, quando o país abrigava milhões de analfabetos, certamente a maioria não tinha ideia o que seria o tal “forever”. Pior, nos anos 80, “forever” virou sinônimo de palavra de baixo calão, no programa Os Trapalhões. Pronunciada como “forevis” por Mussum. Se em 1961, o “forever” soava deslocado em Eternamente, vinte anos depois, passou a ser hilário. O álbum Louco por Você está fora de catálogo há décadas. Roberto Carlos não autoriza uma reedição, talvez, quem sabe, a culpa seja do “forevis”.
Houve poucas regravações de Eternamente/Forever. Uma delas foi do brotinho Cely Campello, primeira rainha do rock pátrio, que gravou muita versão, mas não teve seu momento “Juntos e shallow now”. Roberto Carlos teve mais um “Juntos e shallow now”, que não causou celeuma. Pelo contrário, tornou-se, em 1963, seu primeiro grande sucesso nacional, Splish Splash, versão feita por Erasmo Carlos para o rock homônimo de Bob Darin e Jean Murray. No original “splish splash” é o barulho da água na banheira em que o personagem da canção está relaxando nos versos iniciais. Erasmo Carlos não encontrou um termo compatível, e foi de “splish splash” mesmo, onomatopeia que tanto serviu para o som provado por um beijo roubado a uma jovem no escurinho do cinema, quanto para o tapa que o beijoqueiro levou pela ousadia.
A época da Jovem Guarda foi pródiga em versões esdrúxulas. Os compactos de sucesso no exterior chegavam nas filiais das gravadoras no Brasil, e os astros do iê-iê-iê eram convidados a fazerem versões às pressas. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a versão de I’ve Should Known Better (Lennon & McCartney), feita por Renato Barros, (do Renato e seus Blue Caps). Carlos Imperial tocou o compacto dos Beatles para Renato tirar a música, botar uma letra em português e cantá-la com o conjunto, no dia seguinte, em seu programa na TV.
Renato Barros, que não entendia nada de inglês, se guiou pelos sons aproximados da letra original. Fez uma versão que nos dias atuais, talvez lhe rendesse problemas com a Justiça por incitamento à pedofilia: “Ah, deixe esta boneca/ faça-me um favor/ deixe isto tudo/ e vem brincar de amor”. Rossini Pinto é autor da primeira, e provavelmente, única versão de uma música de Bob Dylan no Brasil dos anos 1960. Recheou dos versos mais banais possíveis um dos principais clássicos da obra de Dylan, I Shall Be Released. A versão foi gravada por José Ricardo, esquecido ídolo da Jovem Guarda (citado em Festa de Arromba: “Sergio e Zé Ricardo conversavam no jardim”. Um trecho da letra: “Pensei em um dia ser feliz/ pensei em um dia ter você/ pois eu me lembro da lição/ que a própria vida me ensinou/ eu não pedi piedade/ quis amor você negou/ algum dia/ algum dia/ você chorará também”.
Faça-se justiça a Paula Fernandes, tirando-se o “Juntos e shallow now”, que faria mais sentido num poema de vanguarda, a versão é mais uma das centenas já gravadas no Brasil, de poética banal, como aliás é quase tudo na música sertaneja. Um mero pecado venial, em meio a tantos e tantos pecado mortais, como os cometidos por Zé Ramalho no álbum Tá Tudo Mudando - Zé Ramalho Canta Bob Dylan. Difícil saber qual a versão que mais atenta contra o talento de um compositor que ganhou um Nobel de Literatura.
Talvez a pungente Knock on Heaven’s Door, cuja versão, quase literal, soa mal do começo ao fim, e ainda pior pelo ritmo acelerado que Ramalho imprimiu à música. Dylan e os Beatles são as maiores vítimas dos versionistas, mas Paul Simon levou uma traulitada de dar dó quando Carlinhos Caldas e Luiz Caldas transformaram The Boxer (O Boxeador), de Paul Simon, em Bailarina. Voltando à Paul Fernandes e seu “Juntos e shallow now”, ela poderia ter resolvido o problema de misturar português com inglês e não se fazer entendida em ambos os idiomas. Era só gravá-la em inglês. Em 2006, Paula lançou Dust in the Wind, um álbum inteiro em inglês, no qual uma das faixas é a citada The Boxer.
Faça ou não sucesso, pelo menos, a versão de Shallow já acrescentou uma expressão ao idioma. Quem sabe “Juntos e shallow now” não estará nas próximas edições dos dicionários da língua portuguesa?