Ao longo de sua carreira de quase quatro décadas, Madonna já assumiu diferentes personas, transformando cada lançamento em uma possibilidade de explorar novos terrenos temáticos, sonoros e afetivos. Em Madame X, seu 14º álbum de estúdio, ela reúne várias dessas facetas, da ativista política à rainha das pistas de dança, passando por seus questionamentos religiosos e coração partido. O disco, que chega oficialmente às plataformas de streaming na sexta-feira (14), é um caldeirão de influências que reflete as experiências da artista nos últimos quatro anos, desde o lançamento do Rebel Heart (2015).
Afeita a criar mitologias sobre si, Madonna contou que o nome Madame X lhe foi dado pela icônica coreógrafa Martha Graham, falecida em 1991, de quem foi aluna. Segundo a Rainha do Pop, Graham ficou intrigada com o caráter camaleônico da jovem bailarina e a desafiou, diariamente, a apresentar uma nova identidade, passando a chamá-la de Madame X. Independente da veracidade da história, o fato é que a cantora abraçou o conceito e fez da personagem um veículo para abordar suas angústias atuais.
Leia Também
“(Madame X é) Uma agente secreta viajando ao redor do mundo, trocando sua identidade, lutando por liberdade, trazendo luz a lugares sombrios. Ela é uma professora de dança, uma professora, uma chefe de estado; uma governanta, uma prisioneira, uma estudante; uma freira, uma cantora de cabaré, uma santa e uma prostituta”, explicou em um vídeo sobre o novo trabalho.
O processo de concepção do disco tem como um dos pontos-chaves a mudança da artista para Portugal, em 2017, para que o filho David Banda, de 13 anos, pudesse se dedicar aos treinos de futebol no Benfica. Em entrevistas recentes, Madonna contou que a mudança a deixou isolada e criativamente estagnada. Foi então que começou a circular mais por Lisboa e entrar em contato com a fervilhante cena artística da capital portuguesa, hoje um dos grandes centros criativos da Europa. Esses encontros com culturas múltiplas, especialmente africanas, ibéricas e latinas, permeiam todo o Madame X.
O álbum chega em um momento em que muito se fala sobre a idade de Madonna, como se os números depusessem contra ela (um recente perfil feito pela revista do New York Times irritou a artista por, segundo ela, focar demasiadamente neste tópico). Aos 60 anos, ela é uma figura solitária no cenário da cultura pop que idolatra a juventude. A perseguição ao seu envelhecimento não é novidade: aos 30, seu comportamento já era criticado. Como a pioneira que sempre foi, ela continuou desafiando os rígidos códigos patriarcais.
Nesse sentido, é interessante observar como Madame X mais uma vez subverte as expectativas, reforçando sua posição de artista inquieta e provocadora. Não se trata, aqui, se competir com Taylor Swift, Rihanna ou Ariana Grande, mas de se colocar mais uma vez à prova, ao invés de viver das glórias do passado (e seu catálogo precioso permitiria isso). A ambição artística de Madonna, aliás, é um de seus aspectos mais fascinantes e, no novo trabalho, ela se expressa na voracidade de explorar múltiplas sonoridades e se posicionar politicamente.
REALIDADE E UTOPIA
Medellín, faixa que abre o álbum, reforça a ligação de Madonna com a música latina, que remonta ao clássico La Isla Bonita e nunca abandonou a discografia da Rainha do Pop, eventualmente se manifestando em faixas de álbuns como Bedtime Stories (1994) e Hard Candy (2008), por exemplo. Parceria com Maluma (que aparece novamente em Bitch, I’m Loca, um reggaeton mais tradicional), a canção evoca um universo onírico de paixão e retorno a uma longínqua inocência.
A faixa, assim como metade do disco, tem produção do francês Mirwais Ahmadzaï, com quem Madonna trabalhou nos discos Music (2000), American Life (2003) e Confession on a Dancefloor (2005). A parceria dos dois volta afiada e abraça a experimentação, a exemplo das fascinantes Dark Ballet e God Control. Em ambas, Madonna subverte as expectativas de construção sonora submetida às fórmulas do pop contemporâneo.
Os temas políticos das faixas se manifestam também no audiovisual, como é intrínseco ao trabalho de Madonna. No clipe de Dark Ballet, a cantora volta a criticar o fanatismo religioso a partir de analogias com a Santa Inquisição. No entanto, ao contrário de se colocar como mártir (como já fez várias vezes), o protagonismo é do rapper Mykki Blanco, queer e negro.
God Control é uma crítica enfática aos Estados Unidos contemporâneo, sua obsessão por armas e falta de apreço pelos corpos dissidentes. Com um coral que evoca Like a Prayer, a canção se transmuta em uma transcendente e esperançosa faixa do disco. O otimismo que não nega a realidade e a empatia norteia o álbum, dando o tom de músicas como I Rise e Killers Who Are Partying.
“Eu sei o que sou e o que não sou/ O mundo é selvagem/ O caminho é solitário”, canta, em português, nesta última, que evoca o fado português que encantou Madonna.
A Rainha do Pop, aliás, abraça o idioma de seu novo endereço em diferentes faixas. “Eu te amo/ Mas não deixo você me destruir”, entoa em Crazy. “Aquilo que mais magoa/ É que eu não estava perdida”, afirma na delicada Extreme Occident, canção sobre como tantas vezes nos buscamos (erroneamente) em outros pontos geográficos ou outros corpos, como uma bússola quebrada.
O mergulho reflexivo de Madonna não exclui (e nem deveria) a libido que move a pista de dança, como ela mostra em Faz Gostoso, parceria com Anitta. Regravação do sucesso da cantora Blaya, a canção, surpreendentemente, funciona e abraça o funk e o passinho. I Don’t Search, I Find, reposiciona Madonna. Outros pontos altos do disco são a excelente Batuka, com um grupo de batukeiras de Cabo Verde, e Crave, esta mais próxima das tendências atuais, mas que apresenta Madonna com um desejo ardente, quase doído.
Mais do que tentar desvendar quem seria Madame X, o disco tem êxito ao abraçar o caleidoscópio de referências das vivências de Madonna nos últimos anos. Mais do que uma polaroide, ou uma foto de Instagram cheia de filtros (apesar do uso recorrente de autotune), é um ensaio cuidadoso de alguém que, afinal, sabe quem é, mas está sempre disposta a se reinventar.t