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Memória

Nelson Gonçalves tornou-se centenário

Ele cantou a alma passional do brasileiro

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 23/06/2019 às 7:06
Foto: Divulgação
Ele cantou a alma passional do brasileiro - FOTO: Foto: Divulgação
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Nelson Gonçalves, que teria feito 100 anos neste dia 21 de junho de 2019, por pouco não nasceu no Uruguai. Seu Manoel Gonçalves e dona Libânia de Jesus, portugueses, ganhavam a vida como cantores ambulantes, com um repertório de canções populares portuguesas. Naquela noite de 21 de junho chegaram a Santana do Livramento, fronteira com o Uruguai. A intenção era ganhar algum dinheiro cantando na feira na fronteiriça Rivera, no país vizinho. Mas Dona Libânia sentiu as dores do parto e interromperam a viagem.

 Naquele dia nasceu Antônio Gonçalves Sobral, um dos mais bem sucedidos nomes da música popular brasileira, recordista em vendas de disco, com uma trajetória atribulada, de bons e maus momentos. Muitas passagens na biografia de Nelson Gonçalves são controversas, incluindo o dia em que nasceu. No registro está como 25 de junho. Mas Nelson sempre disse que nascera no dia 21 (às vezes no dia 19). Provavelmente foi registrado dias depois do nascimento. No documento não consta o “Sobral”. Apenas Antonio Gonçalves.

 Nada a estranhar. Seu Manuel chegou ao Brasil em 1902, e Dona Libânia em 1911. A obrigatoriedade de imigrantes se registraram na Delegacia Especial de Estrangeiros só foi instituída em 1938, durante o Estado Novo. Ainda assim, o casal só regularizou sua situação em 1942. Não sem ter certeza se o pai do cantor se chamava Manuel ou Manoel.

 Um bom exemplo do difuso limite entre realidade e ficção na biografia de Nelson Gonçalves está num episódio acontecido na Lapa, bairro boêmio que costumava frequentar. O cantor se encontrava no balcão de um botequim diante de um traçado (mistura de vermute, ou conhaque, com cachaça) quando um sujeito deulhe um esbarrão e derramou a bebida. Nelson virou-se e acertou um jab no queixo do desastrado, pondo-o a nocaute.

 Os fregueses apressaram-se em lhe revelar em quem ele batera: Miguelzinho Camisa Preta, malandro temido na Lapa. Porém, nunca existiu um Miguelzinho Camisa Preta. Miguelzinho foi, sim, um capoeirista. Houve um Camisa Preta que com a navalha na mão era um perigo. Mas morreu em 1912.

Aos cinco anos Antônio já cantava nas feiras com o pai e a mãe. Cantou até os nove, quando seu Manoel, decidiu deixar a música, e se estabelecer com emprego fixo em São Paulo. O filho foi jornaleiro, engraxate, trabalhou numa tamancaria carregando toros de madeira (com QUE se faziam os tamancos). Aos 14 anos, o pai conseguiu-lhe emprego na fábrica de metais Wolf. Antonio, no entanto, queria ser cantor. Embora tenha tentado por pouco tempo ser boxeador.

Em 1939, já casado, chegou a ser contratado pela rádio PRA-5, da capital paulista. Foi dispensado, e contratado pela Rádio Cruzeiro do Sul. O irmão mais velho, Quincas tornou-se profissional do rádio antes de Antonio, mas nunca escapou da sombra do irmão, quando este entrou no mundo da música como Nelson Gonçalves. Dispensado pela Cruzeiro do Sul por exigir aumento no salário, Nelson foi para o Rio, onde penaria durante três anos.

 Fez amizades na boemia, mas demorou a agradar aos que comandavam o rádio carioca. Passou por pensões baratas no Catete e na Lapa, dormiu em bancos de praça, mas acabou sendo contratado pela Mayrink Veiga, grande emissora de então, onde estreou em 28 de agosto de 1941. Estreou em disco no mesmo ano, com um 78 rotações que trazia no lado A Se Eu Pudesse Um Dia (Osvaldo França/Orlando Monello) e, no B, Sinto-me Bem (Ataulfo Alves).  O sucesso viria com Renúncia (Roberto Martins/Mário Rossi), lado B do bolachão com o samba Isso Aqui Tem Dono (Benedito Lacerda/Darci de Oliveira). Muita gente achou que se tratava de Orlando Silva. Soava realmente parecido para quem não sabia das sutilezas das interpretações do “Cantor das Multidões. Que fazia malabarismos harmônicos, brincava com o andamento das canções, feito João Gilberto anos mais tarde. Curiosamente o baiano João, em tempos quando se deixava ser entrevistado, revelou que sua maior influência foi Nelson Gonçalves:

“Eu era um menino ainda, lá em Juazeiro – pequena cidade do interior baiano onde nasci – tinha a cabeça povoada de sonhos, o coração repleto de esperanças, quando ouvi falar em Nelson Gonçalves. Desde o primeiro momento em que seu nome ficou gravado no meu cérebro procurei ouvi-lo... Ouvi-o e, a partir daquele instante, incorporei-me à legião do criador de Boemia. Confesso que, na minha inocência de garoto pobre, desejei ardentemente ser um Nelson Gonçalves quando crescesse” (à Revista do Rádio, em 1960). Talvez por isso, Nelson Gonçalves poupasse João Gilberto quando falava mal da bossa nova.

ENCONTRO

 Adelino Moreira, nascido em Portugal (na cidade de Gondomar), mas desde os cinco anos no Brasil, conheceria Nelson quando já estava com 32 anos, passara por uma carreira de cantor sem maior relevância e guardava dezenas de composições inéditas na gaveta. Para se sustentar trabalhava na joalheria do pai. Nelson Gonçalves já era famoso quando, em 1952, gravou o samba-canção Última Seresta, a primeira música assinada por Adelino Moreira com um parceiro, Sebastião Santana, jornalista que intermediou o encontro entre Nelson e Adelino (possivelmente, ganhou a parceria por conta disso).

Em pouco tempo, Adelino deixaria de trabalhar com o pai. Quando passou a ser fornecedor de canções para Nelson Gonçalves, poucos astros da música brasileira venderam tantos discos. Na soma geral, ao longo da carreira, 81 milhões de cópias, até os anos 90. Nelson só perdia para Roberto Carlos, que já passou dos 120 milhões. Numa época em que autor dividia composição com intérprete famoso, Adelino não abria a parceria. Nelson assina pouquíssimas músicas com ele. Nos grandes sucessos da dupla, Adelino faturou o suficiente para comprar uma vistosa mansão com piscina em Campo Grande, carrões, e fazer investimentos. No final dos anos 50 e início dos 60, Adelino Moreira foi o compositor que mais faturou com direitos autorais no país. Não apenas com Nelson Gonçalves. Compôs para Ângela Maria, Núbia Lafayette e o clone de Nelson, o capixaba Carlos Nobre.

DESENCONTROS

 O compositor aplicava o que ganhava e o cantor gastava. Já no início da carreira exagerava na bebida. Elvira, a primeira mulher, o largou pelos maus tratos que recebia do marido notívago e namorador. Com a cantora Lourdinha Bittencourt teve um relacionamento longo e problemático. Ela aguentou o quanto foi possível. Não estava mais com o cantor no seu pior momento: o 8 de maio de 1966. Na edição de 11 de maio daquele ano, O Globo estampava na primeira página uma foto do cantor, visivelmente abatido, e o título: “Nelson Gonçalves Preso Por Tráfico de Cocaína”. Nelson disse comprara a droga para uso próprio. Revelou que era viciado desde 1949. Mas não traficava. Nessa época, sua carreira naufragava. Tinha mais amizades entre traficantes do que no mundo artístico. A polícia não chegou para prender um ídolo popular e, sim, um fora da lei. Foi um escarcéu.

 A casa cercada pela polícia, a porta arrombada, o delegado bateu na cara de Nelson e o algemou, na frente da mulher, Maria Luiza (empregada doméstica com quem se casou em 1962), e dos filhos. Foi autuado por tráfico. Uma balança de precisão encontrada em sua casa era uma das provas, reforçada por 200 gramas de cocaína que um dos seus fornecedores acabara de trazer.

 No dia 20 de maio uma multidão acorreu ao presídio onde o cantor estava preso. Ele seria libertado naquele dia. Saiu pela porta dos fundos, driblando os fãs. Dois dias mais tarde internou-se numa clínica de recuperação para dependentes químicos, no bairro da Liberdade. Mas não se libertou logo das drogas (além de coca, consumia comprimidos, na época chamados de “bolinha”). Somente no início da década seguinte, Nelson Gonçalves livrou-se dos vícios. Porém teria que começar do zero. Imóveis, carros, lojas de eletrodomésticos, contas bancárias, tudo ele torrou com farras e drogas.

NO RECIFE

A capital pernambucana ocupou um lugar de destaque na carreira de Nelson Gonçalves. Entre 1944 a 1947, ele lançou 11 frevos de autores do Recife: Capiba, Sebastião Lopes, Irmãos Valença, Nelson Ferreira e Zumba. Gravações exclusivas para o Carnaval de Pernambuco, encomenda de lojistas locais, que foram tocadas na Rádio Clube, a única do Recife na época. Em 1945, ele emplacaria nas paradas com Maria Bethânia, samba-canção de Capiba.

 A partir da década seguinte, apresentou-se com mais frequência na cidade, que, além dos programas de auditório nas emissoras de rádio, tinha boates chiques, feito a do Restaurante Leite, onde ele cantou, em dezembro de 1950, com a mulher Lourdinha Bittencourt. Quando retomava a carreira, no começo dos anos 70, o cantor ganhou um alentador impulso dado pelo empresário Pinga, com quem fez a primeira turnê, indo do Espírito Santo à Bahia. Num período de oito anos, segundo o biógrafo de Nelson Gonçalves, o historiador Marco Aurélio Bezerra, Pinga promoveu 78 apresentações do cantor, país afora.

 Assim como Cauby Peixoto, Ângela Maria e o próprio Agnaldo Timóteo, somente no final da carreira Nelson Gonçalves foi reconhecido pelo público dito classe A. Nos anos 90, a Raio Lazer levou-o ao Teatro Guararapes, pela primeira vez. Nelson era cantor de clubes sociais, de churrascarias ou de show abertos ao público. No Guararapes foram dois dias de casa lotada.

Por coincidência, o disco que fechou a longa discografia de estúdio do cantor teve um produtor pernambucano, Robertinho do Recife, que conta que só teve problemas com Nelson Gonçalves, que não queria cantar Bem Que Se Quis (versão de Nelson Motta, para E Po’ Che Fa, de Pino Daniele). Machão assumido, Nelson se invocou com os versos: “Agora vem pra perto vem/vem depressa vem sem fim/ dentro de mim/que eu quero sentir o teu corpo pesando/sobre o meu”. “Mas como, Roberto, dentro de mim? Teu corpo pesando sobre o meu? Eu cantar isso?”. Acabou sendo convencido a gravar a música, uma das faixas de Ainda É Cedo, lançado em 1997 pela BMG (que assumiu a RCA).

 Nelson Gonçalves morreu às 20h45m, de 18 de abril de 1998, de um fulminante infarto do miocárdio, a dois meses de completar 79 anos.

DISCOS

 Um centenário com menos celebrações e homenagens do que Nelson Gonçalves merecia. A mais importante de todas foi o anúncio, pela Sony Music, da liberação nas plataformas de streaming (desde sexta, dia do centenário) de parte da discografia do cantor. Trinta e cinco álbuns voltam ao catálogo, por enquanto no formato digital. O cantor ganha dos Correios um selo oficial alusivo à data.

 Desde 4 de janeiro de 2019, está nos palcos o musical Nelson Gonçalves – O Amor e o Tempo, dirigido e coreografado por Tania Nardini. A cantora pernambucana Cristina Amaral, com aval de Margareth Gonçalves, filha de Nelson, montou o espetáculo Uma Saudade Chamada Nelson Gonçalves. Cristina é dirigida por Carlos Pacheco, com roteiro de Saulo Aleixo e direção musical e arranjos de Jefferson Cupertino e Thiago Albuquerque. No dia 18 de abril, dia da morte do cantor, o show teve imagens captadas para um DVD.

 

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