Aconteceu na guerra de Canudos (7 de novembro de 1896 a 5 de outubro de 1897), quando se deu a disputa de um povoado do interior da Bahia, liderado por Antônio Conselheiro, contra o exército da recém-instalada República. No conflito, um soldado foi dado como morto e transformado em herói. Mas apareceu três dias depois, vivinho da silva. A lenda ‘que abalou comovedoramente a alma popular’, conforme registrou Cunha, teve origem na quarta expedição militar à pequena cidade de Canudos. O episódio é contado no clássico Os Sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902. Seria a inspiração, 60 anos depois, para Dias Gomes escrever O Berço do Herói, que seria proibida pela censura na data da estreia, em 1965, embora o texto fosse publicado em livro, pela Civilização Brasileira.
Os militares, há um ano no poder, não se agradaram do roteiro. “O protagonista da peça teatral é um cabo da Força Expedicionária Brasileira (FEB), dado como morto na Segunda Guerra Mundial e transformado em santo na sua terra natal, que passa a lucrar com turista em busca dos milagres do militar. Depois de dezessete anos, ele reaparece vivinho da silva. Em vez de morrer lutando pela pátria, desertara e passara a viver em bordel na Europa. Sua volta colocará em risco os negócios dos poderosos da cidade, que farão de tudo para manter o vivo morto, nem que para isso tenham de matá-lo”. O texto entre aspas foi pinçado do livro Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura, da jornalista Laura Mattos, da coleção Arquivos da Repressão no Brasil, coordenada por Heloisa M.Starling, e publicado pela Companhia das Letras (454 páginas, R$ 94,90, edição impressa, R$ 44,90,e-book).
O livro é uma versão revista e ampliada da dissertação de mestrado que a autora defendeu, três anos atrás, na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. “A intenção foi contribuir para um viés ainda pouco explorado. A censura aos programas televisivos costuma ser menos estudada do que a ocorrida no teatro, no cinema, na música e nos jornais, por exemplo. É, certamente, um resultado do papel ambíguo desempenhado pela TV, que se aliou ao regime e dele se beneficiou, apesar de ter aberto espaço a conteúdos críticos”, explica-se na introdução. O foco são O Bem Amado e Roque Santeiro, e sua trajetória nas décadas de 60, 70 e 80. Mas é também um olhar mais aprofundado sobre o autoritarismo arraigado no Brasil, irrestrito à ditadura e suprapartidário. Roque Santeiro foi proibida, em 1975, durante o regime dos generais, e sofreu cortes na versão de 1975, durante a Nova República do maranhense José Sarney. Este o mais traumático, porque a novela estava com 36 capítulos gravados. Foram engavetados.
“Após a última notícia do Jornal Nacional, daquele 27 de agosto de 1975, entrou no ar a abertura de A fabulosa estória de Roque Santeiro e de sua fogosa viúva, a que era sem nunca ter sido. A música tinham arranjos de Dori Caymmi, tocava enquanto se via na tela uma sequência de xilogravuras de J.Borges. Os telespectadores surpreenderam-se, pois, em vez do capítulo inicial, Cid Moreira voltou à tela logo após a abertura da novela das oito. Durante cerca de dois minutos, o apresentador do Jornal Nacional lê, com seu ar sóbrio, um editorial que pela primeira vez escancarava uma divergência entre a maior emissora de televisão o país e a ditadura militar. O próprio Roberto Marinho, dono da Rede Globo, escrevera o texto, na véspera, quando recebeu com muita irritação que Roque Santeiro, de Dias Gomes, havia sido impedida pelo governo de estrear naquele 27 de agosto de 1975”. Dias Gomes ainda tentou maquiar a adaptação de O Berço do Herói. Em lugar do cabo Jorge, um fabricante de imagens de santos, morto num combate contra bandoleiros que atacaram a cidade.
Entre as várias fontes de pesquisa que Laura Mattos empregou está o diário de Dias Gomes. Nele, o escritor menciona a desaprovação de um personagem de sua peça A Invasão pelo Partido Comunista. Gomes não afirma ter sido censurado pelo PCB, mas isto aconteceu a outro autores comunistas, amigos dele: “A direção partidária inventava personagens, matava outros, e proibia obras inteiras, em consonância com a caneta pesada da ditadura soviética”, o que teria acontecido a Jorge Amado e a Oduvaldo Vianna Filho. Laura até aponta para uma raramente abordada versão tropical do macartismo, referência ao senador americano Joseph McCarthy, anti-comunista radical, dos que caçavam vermelhos até debaixo da própria cama, e que foi pivô para a perseguição à esquerda nas mais diversas áreas de atividades profissionais nos EUA.
SEGURANÇA
Em 1953, foi assinada uma nova Lei de Segurança Nacional, mais ampla e severa do que a de 1935, que foi revogada depois da ditadura Vargas. Essa Lei de Segurança Nacional foi estabelecida com Getúlio novamente no poder, agora eleito pelo povo. Os eflúvios da guerra fria, num mundo dividido entre Estados Unidos e União Soviética, exigiam um instrumento que evitasse o perigo vermelho. Durante o macartismo à brasileira, Dias Gomes foi demitido da Rádio Clube, onde se iniciava um rapaz de 18 anos, José Bonifácio Sobrinho, também, quem diria, comunista. Gomes entrou numa lista negra: “Um combinado informal entre empresários para barrar a contratação de comunistas e afins”. Como aconteceu no macartismo americano, Dias Gomes teve que assinar seus textos com nomes falsos, ou alguém assinava por ele.
Paralela à luta de Dias Gomes contra a censura conta-se a evolução da TV brasileira, pontuada por episódios de refregas contra o cerceamento à liberdade de expressão, que engolfava até Chacrinha, que chegou a ser preso, sem que tivesse tempo de trocar as espalhafatosas roupas que usava diante das câmeras. Dia Gomes não foi deixado em sossego nem mesmo quando o país foi redemocratizado em 1985. Os altos índices de audiência de O Bem Amado, naquele ano, não impedia que a própria TV Globo exercesse a autocensura para evitar os prejuízos que os cortes poderiam ocasionar: “. Em uma longa carta, queixando-se da censura interna da TV Globo, endereçada a José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, todo poderoso da emissora de Roberto Marinho. Lê-se em um dos itens:
“Esse clima leva cada funcionário da Globo, desde os mais escalonados aos mais humildes se transformarem num censor. Quando passo pelos porteiros, já temo que um deles me chame de lado e diga: Olhe, vi no VT (videotape) aquele episódio. Acho que você deve mudar aquela cena,aquilo não passa ...