Lourenço da Fonseca Barbosa pairou sobre a música pernambucana, e brasileira, durante seis décadas. Faleceu em 31 de dezembro de 1997, aos 93 anos. A viúva do compositor, Zezita Barbosa, optou por se mudar do Recife para Surubim, cidade natal do marido, levando consigo o acervo deixado pelo músico, que também era artista plástico. Partituras, telas, matérias e artigos de jornais publicados sobre ele, uma vasta coleção de fotografias, além de comendas, honrarias e documentos em geral. Só partituras, estima-se que haja 800, cerca de 300 de composições inéditas. Afora as que Capiba compunha com o gravador ligado, preservadas em várias fitas de rolo, cujo conteúdo só agora está sendo conferido. Todo este material está relativamente bem organizado e conservado, na casa de Zezita Barbosa, mas sem as condições ideais, sobretudo para as preciosas partituras escritas em papel, material sensível à ação do tempo.
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No entanto, numa ação conjunta envolvendo a Associação Cultural Capiba e a produtora Página 21, o acervo escapará da destruição graças a um projeto idealizado há dois anos, e que começa a ser posto em prática: “Na época, fomos convidados por Beto Azoubel, então no Ministério da Cultura, pra conhecer a associação e o acervo de Capiba. A partir desta reunião, veio a primeira proposta de restauro do acervo. A conversa com a Associação Cultural Capiba foi muito no sentido do memorial. A gente defendeu que o memorial também seria prioritário, mas não adiantava sem o acervo estar restaurado.
A página 21 fez o primeiro projeto para restauração de 300 partituras, que, a princípio, é o que está mais em risco no acervo. Depois vêm as fotografias e as fitas”, conta Amaro Filho, produtor da página 21, que participou de reunião em Surubim, com Dona Zezita Barbosa e participação da colega Cláudia Lisboa, mais o atual presidente da Associação Capiba, Fernando Guerra O projeto de catalogação das partituras foi entregue para Lucas Guerra, músico e professor do Conservatório Pernambucano de |Música (CPM), um especialista na obra de Capiba:
“Fiz minha dissertação na UniRio sobre os choros de Capiba. Estou com a parte da curadoria, a gente vai selecionar 300 partituras dele, para restaurar e fazer a divulgação, vou participar da parte da história, da parte biográfica. Um rapaz chamado Batista, que não conheci pessoalmente, organizou as partituras, cerca de 825, com músicas, que estão manuscritas, editadas. Além disso, há outra coisa interessantíssima, com a qual pretendemos realizar outro projeto: são 40 rolos de fitas, com música de Capiba. Ele se sentava diante do piano, apertava o rec e começava a gravar. Tem muita coisa neste acervo que precisa ser descoberta. Estou fazendo um levantamento da obra dele, como nunca foi feito. Tem umas biografias, muitos trabalhos, livros que estão incompletos. Ele próprio deixou um caderno com algumas músicas que editou, aponta em qual editora estão, por quem foi gravada, mas não está completa”, diz Lucas Guerra.
O interesse de Lucas em Capiba deve-se, em grande parte, ao fato de serem conterrâneos, mas se concretizou quando ele conheceu dona Zezita Barbosa, quando ela ainda morava na casa da Rua Barão de Itamaracá, no Espinheiro, onde viveu com o compositor.
“Como todo bom pernambucano, sempre escutei frevo desde pequeno, mas via Capiba apenas como referência do frevo. Depois que passei a ir à casa de Zezita, onde às vezes acontecia umas rodas de violão, foi que eu conheci melhor a obra de Capiba e vi que era muito mais completa, que ia muito além do frevo. Criei um laço de amizade grande com Zezita, e foi aí que decidi fazer uma pesquisa sobre a música de Capiba”, explica. Ele acha que o fato de o acervo estar em Surubim favoreceu o surgimento de um projeto como o que está sendo realizado. “Mesmo com todas as dificuldades de uma cidade do interior, as pessoas têm um orgulho grande de um personagem ilustre. Claro que será uma luta bastante dura, mas a associação, da qual também faço parte, vai indo muito bem. Acho que vamos conseguir espaço para salvaguardar esta riqueza cultural que a obra de Capiba”, avalia.
Memorial
Amaro Filho diz que o acervo é grandioso, e que está relativamente bem guardado:
“Talvez por Capiba ter sido bancário, ele tinha uma metodologia mínima de organização, mas precisa de um local onde possa ser mais apropriadamente arquivado. A associação conseguiu um terreno para construir o memorial, cedido pela prefeitura de Surubim. Mas não vamos ficar no memorial e no restauro. Tem outros projetos de difusão da música de Capiba. A gente está vivendo um momento em que a memória cultural, a tradição, como costume de um povo, está sendo cada vez mais aviltada. Então, queremos estender o projeto para a difusão sonora, promover shows, reunir cantores nacionais em torno da obra de Capiba. Enfim, fazer do acervo de Capiba grande celeiro de criação”.
A Associação Cultural Capiba foi fundada em 17 de dezembro de 2008. Até 2019 esteve presidida por dona Zezita Barbosa. Atualmente, o presidente é o escritor Fernando Guerra, que é otimista quanto ao memorial, mas acredita que ele vai demorar a ser viabilizado: “Conseguimos a doação do terreno desde o ano de 2016. São 740 metros quadrados, muito próximos do centro da cidade, em local privilegiado. Em seguida, um grupo de estudantes de arquitetura e arquitetos elaborou um projeto arquitetônico. No entanto, os detalhes como os custos e um possível cronograma para desembolso ainda não saiu do papel. Tomamos iniciativas para localizar possíveis doadores para o projeto entre os empresários locais, utilizando a Lei Rouanet. No entanto, nossa prefeita, de quem esperávamos o maior interesse nesse sentido, ainda não se manifestou. Já conversamos com o maior industrial do município, que demonstrou interesse em destinar recursos via Lei Rouanet para nosso projeto, vamos ampliar para outros apoios”, diz Fernando Guerra
RESTAURO
A responsável pelo restauro, Luanda Andrade, tem os conhecimentos necessários para a empreitada. Fez curso técnico em Conservação e Restauro de Bens Móveis e Integrados pela Fundação de Arte de Ouro Preto, concluído em 2012, e mestrado profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Programa de Especialização em Patrimônio promovido, pela Copedoc/Iphan em convênio com a Unesco. Especificamente quanto a Capiba, ela começou pelo que foi considerado mais urgente: “Selecionamos o que consideramos ser prioridade nesta etapa do projeto. As partituras, porque muitas delas são manuscritas e se encontram em estado péssimo, ruim, ou regular, segundo um arrolamento realizado anteriormente por técnicos da Fundarpe”, explica Luanda.
É um trabalho delicado e minucioso, porque cada uma necessita de tratamento específico: “Será necessária a realização do diagnóstico de cada partitura seguido de alguns testes, para finalmente definir o tratamento mais adequado a cada uma. A priori, prevemos alguns procedimentos básicos, como limpeza mecânica com pó de borracha, remoção de adesivos, banhos de limpeza e desacidificação com água deionizada, dependendo muito do tipo de tinta utilizada no documento. Há, ainda, a planificação nos documentos amassados ou dobrados, pequenos enxertos, entre outros”, esclarece Luanda Andrade, lembrando que este acervo será também digitalizado.