“Que merda é esta?”. A eloquente pergunta abre uma das mais célebres resenhas de discos da historia do rock and roll (escrita para o então jornal Rolling Stone). Quem a assina é o escritor e jornalista Greil Marcus, um dos mais importantes dos EUA. A pergunta é muito mais uma exclamação, proferida depois da primeira audição do álbum Self portrait, de Bob Dylan (1970). Segunda-feira passada, no site oficial do cantor foi anunciado o lançamento, em 27 de agosto, do 10º volume da The bootleg series, Another self portrait, espécie de mea culpa pelo disco controverso, e que promete ser um das melhores edições da série, iniciada em 1991. Recluso desde um acidente de moto, em 1966, no qual teria quebrado o pescoço, e permanecido imobilizado por vários meses (há biógrafos que contestam a gravidade do acidente), Bob Dylan, morava em Woodstock, região rural do estado de Nova Iorque, e fazia música com The Band.
Self portrait foi um ato de autoimolação. Uma proposital, mal alinhavada, colcha de retalhos, que agrega fonogramas de épocas e fontes diferentes. Traz desde sobras do elogiado Nashville skyline (1969), até os piores trechos do concerto no festival da ilha de Wight, em 1970. Uma das poucas faixas elogiadas por Greil Marcus na impagável resenha foi All the tired horses, que lembra tema de faroeste italiano. Tem faixas que são anteriores a Nashville skyline, como Minstrel boy, que vem das sessões, em 1967, de Dylan com The Band, que resultaram no álbum The basement tapes (1975). Como se não fosse suficiente os desencontros estéticos das canções assinadas por ele, Bob Dylan ainda incluiu em Self portrait algumas das mais fracas versões que já fez músicas alheias, a exemplo de Early morning rain, do canadense Gordon Lightfoot: “Early mornin'’ rain é uma das gravações mais sem vida do álbum inteiro; uma versão meio na gozação, um vocal duro, e um instrumental insípido que soa como uma risada encanada” (do texto de Greil Marcus). Mas canta fez uma versão ainda pior de The boxer, de Paul Simon (que supostamente a compôs inspirado em Bob Dylan)
Também soa como uma “risada encanada”, seja lá o que ele quis dizer com isto, o fato de Greil Marcus assinar o ensaio do libreto que acompanha Another self portrait, que certamente escutou sem repetir a pergunta que se fez 43 anos atrás. Another self portrait tem pouco a ver com o atabalhoado Self portrait. Por sinal, no livro Bob Dylan: Writing 1968-2010, Greil Marcus cita o cantor explicando a razão de ter lançado o álbum em 1970: “Soltamos aquele disco pra afastar o pessoal de cima de mim, a fim de que as pessoas deixassem de comprar meus discos. E elas deixaram”. Em outra entrevista de 15 anos depois,à Rolling Stone, Dylan revela que Self portrait foi feito para expulsar os hippies que acampavam diante da casa em que vivia com a família em Woodstock. Ainda o viam como o porta voz de uma geração (algo semelhante ao que Chico Buarque fez na mesma época no Brasil).
Another self portrait chegas lojas em três versões: álbum duplo, caixa com quatro CDs, ou com três LPs, mais fotos raras, com um libreto com ensaio, textos. São 35 faixas, nos dois discos. Várias inéditas, pelo menos oficialmente. Abrangem de Nashville skyline a New morning (o disco lançado logo em seguida a Self portrait), este com quase todas as faixas em versões alternativas. Das lendárias sessões de Dylan com George Harrison vieram à tona apenas duas faixas. Das sessões feitas para o Self portrait foram recuperadas sobras com Dylan interpretando dois contemporâneos, hoje esquecidos, da cena folk de Nova Iorque no começo dos anos 60, Tom Paxton (Annie's gonna sing her song), e Eric Andersen(Thirsty boots).
As gravações feitas para o Self portrait não poderiam ser mais básicas. Bob Dylan cantava e tocava com David Bromberg, na guitarra e Al Kooper, revezando com guitarras e teclados. O produtor Bob Johnston acrescentava mais instrumentos em um estúdio en Nashville. Another Self Portrait traz as gravações originais sem os overdubs (isto é sem o que foi acrescentado), além de demos.
Do New morning, um álbum de transição, autoral, e elogiado, há takes alternativos, até mais interessantes do que os oficiais (já conhecidos de álbuns não oficiais), como New morning, a canção, com metais, ou o poema If dogs run free. E ainda sobras como Working on a guru. Na caixa deluxe, o “maldito” Self portrait ganhou remasterização, e o concerto da ilha de Wight, o primeiro de Dylan desde o acidente, finalmente é lançado oficialmente na íntegra.
