Não deixam de ser simbólicas as duas esferificações que decoram e temperam o carpaccio de polvo com romã e salada do chef Rui Paula. Sobre as lâminas delicadas do molusco, uma bolinha mais escura; outra, mais clara. Numa, sumo de azeitona reduzida à essência. Noutra, azeite preso numa cápsula de um açúcar especial cuja técnica demandaria, aqui, uma breve aula de química. Ao mínimo contato, elas rompem-se para sensualizar o conjunto.
Para o cozinheiro português, tecnologia é meio, nunca fim. “A tecnologia e as técnicas de cocção devem estar a serviço da emoção. Na sua essência, comer é um ato de satisfação básica. Mas uma refeição deve ser mais do que isso. Deve ser uma experiência sensorial e cultural”, diz ele, repetindo uma de suas máximas gastronômicas. É precisamente o encontro simbiótico da tradição potencializada pela técnica, num resultado de elegância cirurgicamente calculada, o que podemos encontrar no restaurante que Rui Paula acaba de abrir com seu nome no Shopping RioMar.
Depois de aclamado pela crítica europeia como um dos renovadores e, sem contradições, preservadores vigorosos da grande cozinha lusa, o proprietário dos restaurantes DOC e DOP, também maestro da cozinha no luxuoso e histórico Renovado Hotel Vidago Palace, resolveu se tornar flying-chef.
A convite do empresário João Carlos Paes Mendonça, proprietário da Quinta Maria Isabel e seu vizinho no Douro, ele encarou com entusiasmo o convite para abrir a casa de 130 lugares no Pina. Rui já fixou residência no bairro. E não veio só: trouxe de Portugal nada menos que 10 membros de sua equipe de 50 pessoas, incluindo seu sous-chef de longa convivência, Gonçalo Pinto.
Não é pequena a empreitada, nem menor o impacto na cena gastronômica local. Dono de rubricas importantes em seu currículo, como o trabalho no Can Roca, em Girona, o três estrelas Michelin dos irmãos Roca que foi considerado o segundo melhor restaurante do mundo em 2010 pela revista inglesa Restaurant, Rui não esquece que sua formação mais basilar se deu, grandemente, nas férias da infância. Quando se iniciava nas receitas de família pelas mãos e palavras da avó materna.
Os dois restaurantes que primeiro lhe deram fama no Douro seguem linhas sutilmente diferentes. O DOC (Degustar, Ousar e Comunicar), um edifício de linhas contemporâneas, tem uma cozinha de sotaque mais cosmopolita. A culinária está ligada a sensações e memórias antigas – vitela, cabrito, leitão, recriados em técnicas de ponta. No DOP (Degustar e Ousar no Porto), instalado no Palácio das Artes, zona histórica do Douro, as origens culinárias portuguesas entram em diálogo com outras fronteiras, sobretudo na gramática oriental de vanguarda no subcapítulo marinho do cardápio.
É precisamente o bom trânsito entre o tempo, entre o passado afetivo gustativo e a tecnologia futurista culinária, que faz de Rui Paula um cruzamento de Ferran Adrià e Paul Bocuse na gastronomia portuguesa contemporânea. “O Adrià provocou muito barulho, não apenas pela genialidade tecnológica, mas porque o que faz tem muito sabor”, diz ele. Ou seja, não há forma sem conteúdo.
Sua cozinha é reverenciosa, mas não teme inovação. E de um senso estético e elegância na composição, além do foco nos ingredientes da estação, que remontam às melhores lições da Nouvelle Cusine. Esteta, Rui chegou a desenvolver alguns modelos de louça com a centenária e prestigiosa casa portuguesa Vista Alegre especialmente para o restaurante do Recife. Como um prato bifásico para comportar um risoto de um lado e o pecado, do outro.
Rui não chega de papilas cerradas ao paladar local, não ignora a tropicalização histórica da cozinha lusa que é a culinária pernambucana. Ao contrário, a incorpora, com equilíbrio. “A cartola e o queijo de coalho com ervas me impressionam muito bem aqui”, diz ele, que acrescentou o pirão, um primo historicamente mais novo da açorda portuguesa, ao cardápio.
A pescada amarela (“terra e mar”), sob crosta de chouriço e amêndoas (R$ 70) tem a companhia de um delicado pirão de frutos do mar e farinha de mandioca, servido à parte numa minicaçarola. “O pirão é uma coisa linda”, decanta. O peixe, delicado e extremamente marinho, evocação do Atlântico a poucos metros do restaurante, tem ponto mais que preciso de cocção. “No Brasil, as pessoas tem ainda o hábito de cozinhar demais os pescados”, diz ele.
É perceptível o gosto de Rui pela potencialização de sabores, mesmo no caminho das sutilezas. Seus pescados, por exemplo, são uma espécie de potencialização de suas sutilezas. Seus sabores harmonizam conceitos aparentemente incongruentes.
Assim, o cardápio é conciso, fácil de manusear e eleger - o que denota outra obsessão do chef: ingredientes frescos, o mais frescos possíveis.
De um apelo sensorial e precisão incorrigível é o carré de cordeiro (R$ 85) com com purê de queijo de cabra. Ou seja, o caprino em dois momentos. Incrivelmente macia, a carne pode ser importada até da Nova Zelândia.
Com mais de 500 rótulos, a carta de vinhos traz obrigatórios dos Novo e Velho Mundos e surpresas menos óbvias, como os ótimos espumantes portugueses da região da Bairrada, além de tintos de grande concentração do Douro.
Elogiável é o capítulo de vinhos a copo na carta - que vai de tintos corretos a menos de R$ 20 a taças de champanhes luxuosas, celebrativas (e naturalmente caras).
Antes da entrada, os diverte-bocas (como os mini-hambúrgueres), assim como os pãezinhos do couvert permanente (os brioches trufados são irrecusáveis), são cortesia da casa. Assim como uma pré-sobremesa, normalmente cítrica, para se limpar o palato antes do doce propriamente.
Eles, aliás, estão num cardápio à parte como suporte adequado às fantasias açucaradas (sem exageros) de Rui Paula e de sua pasteleira Sara Alveres. Batizados ludicamente, os doces tem nomes como Viagem ao Atlântico, uma impressão materializada de sua viagem: uma “terrinha” de biscoito, musse cítrica de manga, infusão de hortelã, coquinho com base de merengue de coco e casquinha de chocolate, ultimado com parfait crocante cítrico. Várias sensações em diálogo no conjunto.
Como na Europa, o restaurante pernambucano de Rui Paula também oferece um menu degustação em seis etapas, com entrada fria, entrada quente, mar, intermezzo, terra, e para acabar (sobremesa). Custa R$ 210 por pessoa.
Há ainda a opção de acrescentar os vinhos harmonizados pelo pernambucano (de grande segurança no que sugere às taças) Helton Silva.
A cozinha luxuosa – e familiar – de Rui Paula desembarca com fome no Brasil. Depois do Recife, ele já alimenta a intenção de abrir uma nova casa, agora em São Paulo.
Rui Paula. Shopping Rio Mar. Av. República do Líbano, 251, Pina. Diariamente, das 12h às 15h e das 19h às 23. Fone: 3878-0000.