No comecinho dos anos 1990, o crítico de música deste, José Teles, recebeu na sua casa, em Boa Viagem, a visita de Chico Science e Fred Zeroquatro. “Eles foram me mostrar a primeira demo que tinham feito”, lembra Teles. Naquele momento, o jornalista apresentou aos músicos uma referência fundamental para a produção de Chico e, mais especificamente, para a amarração conceitual do álbum Da lama ao caos. “Eu achei que tudo aquilo que ele estava fazendo tinha muito a ver com a obra, o discurso de Josué de Castro sobre a fome no Nordeste”, recorda Teles.
A partir dali, Chico encontrou o mentor intelectual que “sempre teve”, mas ainda não conhecia. Tanto as letras do disco inaugural do manguebeat como o próprio Manifesto mangue estão recheados de referências, explícitas ou não, ao geógrafo pernambucano e sua Geografia da fome, onde homens, na lama da miséria social dos mangues, se confundem com caranguejos na peleja diária pela sobrevivência. Os versos da canção-título do álbum fazem um chamado em alto som a ele: “Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça / Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça (...)”.
“Chico era muito esperto. Pegava as coisas muito rapidamente. Nunca tinha lido nada de Josué. Na época, inclusive, os livros dele estavam esgotados, eram caríssimos nos sebos. Mas Chico se apropriou dele no discurso”, diz Teles. “A partir daí, começaram a chover artigos sobre a influência de Josué de Castro na obra de Chico Science, muita coisa de gente querendo achar cabelo em sovaco de cobra.”
Cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, Túlio Velho Barreto sabe da interferência de José Teles na obra de CS&NZ. É um dos estudiosos que enxergam, além da influência, um grande paralelo entre o pensamento de Josué e a obra de Science. “O prefácio de Homens e caranguejos (romance de Josué de Castro) tem vários elementos em comum com o manifesto. A partir do fato de eles próprios, os músicos, se considerarem caranguejos de andada, homens descritos por Josué como seres que se confundiam com a própria lama e os caranguejos”, diz Túlio, autor de um artigo a respeito.
“Chico vai trabalhar, o tempo todo, a fusão do homem com o caranguejo ali naquela realidade. Tudo isso são aspectos sociológicos de uma realidade complexa, que mostra o quanto há de político na obra de Chico, sem ser panfletário”, argumenta ele, lembrando que Samba esquema noise, disco de estreia da Mundo Livre S.A., lançado no mesmo 1994, se nutre dos mesmos argumentos. “A Mundo Livre vai além e faz uma crítica da forma como a cidade ignorou os mangues e agrediu o meio ambiente.”
“Os bairros que Josué de Castro descreve, onde acontece o contexto do romance dele, são citados na letras de Chico Science”, diz, em referência aos versos “É Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor/É o Ibura, Ipsep, Torreão, Casa Amarela/ Boa Viagem, Genipapo, Bonifácio/Santo Amaro, Madalena, Boa Vista, Dois Irmãos/É Cais do Porto, é Caxangá, é Brasilit/É Beberibe, é CDU, Capibaribe, é o Centrão”, de Rios, pontes e overdrives.
Túlio lembra uma série de letras em sintonia com o pensamento de Castro. Além de Da lama ao caos, compara também Antene-se (“Recife, cidade do mangue/Incrustada na lama dos manguezais/Onde estão os homens caranguejos ...”) e Risoflora (“Eu sou um caranguejo e estou de andada ...”) com o que Castro escreveu para explicar que não foi na Sorbonne que tomou conhecimento daquele fenômeno, mas na “lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejos, pensando e sentindo como caranguejos”.
Chico e seus contemporâneos foram também responsáveis por trazer de volta Josué de Castro à agenda editorial e acadêmica. “A reedição de Geografia da fome e de Homens e caranguejos, pela Civilização Brasileira (2001), foi na cena mangue, quando começaram a tornar à superfície com mais vigor.” A temática se estenderia de Da lama ao caos a Afrociberdelia (1996), segundo álbum de Francisco de Assis de França à frente da Nação Zumbi.