Centenário

Cem anos de Lupicinio, o cantor das paixões e dores do amor

Este ano também marca os 40 anos de morte do compositor gaúcho

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 16/09/2014 às 13:15
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Quando morreu, em 28 de agosto de 1974, a menos de um mês de completar 60 anos, o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues teria sido menos pranteado país afora, se não fosse um artigo do paulista Augusto de Campos, publicado originalmente em 1967, e incluído na reedição do livro A bossa nova e outras bossas, em 1974. Lupi, como o chamavam os amigos, era considerado até então um compositor menor, pelas letras de temáticas passionais, e descritivas, sem poupar detalhes sórdidos, como nos programas policiais, ou romances baratos.
Versos que não seguiam padrões românticos e bem comportados das canções dos seus contemporâneos. Afinal, qual deles driblaria o bom gosto para criar versos como estes, de Sozinha: “Levei pro meu sítio/troquei por cetim, os seus trapos de chita/até prá marvada se ver mais bonita/pus luz no seu quarto, invés de candeeiro/E só por dinheiro, sabem o que fez essa ingrata mulher?/fugiu com o doutor que eu mesmo chamei/e paguei prá curar os seus bichos-de-pé”. Lançada por Jamelão, a música teve poucas regravações, uma delas de Wilson Simonal.
Lupicínio Rodrigues, filho de Francisco Rodrigues, um funcionário público (porteiro de uma faculdade), e de dona Abigail, que lavava roupa pra fora para ajudar nas despesas, completaria 100 anos hoje e, ainda, graças ao providencial artigo de Augusto de Campos está sendo reverenciado como um dos maiores e mais originais compositores da MPB, mesmo que as mais recentes gerações de músicos, ou consumidores de músicas não tenham demonstrado maior interesse em sua obra.
Mas o próprio Lupicínio parecia alheio, a grupos ou modismos, era como se fizesse música para se expressar, para os amigos das noites de Porto Alegre. Em 1973, numa entrevista ao semanário O Pasquim, ele comentou: “Não tenho nada com o ambiente musical brasileiro. Não sou músico, não sou compositor, não sou cantor, não sou nada. Eu sou um boêmio”. Nada disso. Ele foi músico, compositor, cantor e boêmio. Da boêmia vinha a inspiração de boa parte de suas canções. Suas noitadas e farras são folclóricas. Sua mulher, dona, não se surpreendia se Lupi saísse cedinho de casa, ainda de pijamas, para comprar a galinha do almoço, e só retornasse três dias depois, sem a galinha. E para aplacar a ira da cara metade tinha uma frase de conforto: “As esposas devem se sentir felizes quando os maridos voltam de suas noitadas, porque a volta é a maior prova de amor que um homem pode dar”.
Sua primeira música gravada foi Pergunte aos meus tamancos, interpretada por Alcides Gonçalves, em 1936, pela Victor, num 78 rotações, no lado B, o samba canção Triste história (em ambos o cantor ganhou a parceria). O primeiro grande sucesso nacional foi Se acaso você chegasse, com Ciro Monteiro (1938), música atípica no seu repertório, mais próxima do samba que de um Ataulfo Alves ou Ary Barroso. Música que tem história curiosa. Composta em 1935, Lupicínio passou a canta-la na Rádio Farroupilha, de Porto Alegre. Marinheiros que estavam na cidade, aprenderam o samba, que se espalhou pelo Brasil, sem que se soubesse quem era o autor. Lupicínio soube que a música já estava editada, e teve trabalho para comprovar que era o compositor.
Lupicínio não se enquadrava em nenhum dos nichos musicais de sua época, nem de qualquer outra. Enquanto o auge de sua carreira, como compositor, aconteceu entre os anos e 50, com uma retomada a partir de 1968, quando os jovens intérpretes da MPB, surgida nos festivais atentaram para a originalidade da música do gaúcho. Por falta de um definição mais precisa, o que compunha foi chamado de dor de cotovelo, teve até quem o considerasse o criador da onda de sambas amargos, de amores desfeitos ou impossíveis.

 


Porém Lupicínio, ao contrário de, por exemplo, Ary Barroso, empregava o mínimo de  metáforas, vai direto ao assunto, sem rebuscamento. Geralmente conta histórias trágicas, que levaram a Augusto de Campos a compara-lo a Nelson Rodrigues. Se em Nelson o ambiente familiar era a caixa de pandora de dores, aflições, desejos reprimidos, pecados mortais, os personagens de Lupicínio Rodrigues são da noite, dos cabarés, dos botequins de segunda categoria: “Quem há de dizer/que quem voces estão vendo/naquela mesa bebendo/é o meu querido amor/reparem bem que/toda vez que ele fala/ilumina mais a sala/do que a luz do refletor”(Quem há de dizer, 1948).
Quem há de dizer, assim como quase tudo o que ele compôs, tem inspiração na vida real: “Éa história minha e de um pianista. Nós cantávamos num cabaré e tínhamos quelevar as nossas namoradas, porque o dono da casa não admitia que nós levássemos as nossas namoradas para o cabaré e não a deixássemos dançar. Então tínhamos que deixar que elas dançassem com os fregueses. Ficavamos esperando que terminasse o negócio (em entrevista ao programa Ensaio, da TV Cultura, em 1973).
 O amor em sua música não é romântico. O amante pode ser confessadamente mau caráter:  “Joguei uma jovem/ao rigor dos caminhos/a trilhar sobre um monte de espinhos/vejam só a maldade que eu fiz (Meu pecado), ou o amante preocupado apenas com o próprio prazer: “Ela disse-me assim/tenha pena de mim, vá embora/tu não deves ficar, ele pode chegar, está na hora” (Remorso), ou descumprindo as regras da moral cristã, como em Vingança: “Você há que rolar qual as pedras que rolam na estrada/sem nunca ter um cantinho de seu pra poder descansar”.

(leia matéria completa na edição impressa do Jornal do Commercio)

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