“I shall be released” (grosso modo, “eu devo ser libertado”, ou “ser lançado”) título de uma das mais conhecidas canções de Bob Dylan, poderia estar nas fitas masters da vultosa quantidade de material inédito no arquivo da gravadora do cantor e compositor mais importante da música popular americana desde os anos 60. Desde 1991, material inédito de Dylan vem sendo lançado numa coleção intitulada bootleg series. O intuito é não deixar nada disponível nas prateleiras da Sony/Columbia, pela qual ele, com exceção de uma breve saída no começo dos não 70, grava desde o álbum de estreia, Com os Beatles, Bob Dylan foi, durante anos, o alvo principal da indústria do bootleg, discos piratas, porém não a simples falsificação de um álbum original. Têm como repertório sobras de estúdio, demos, gravações ao vivo, etc. Em 1969, chegou às lojas dos EUA, um novo álbum de Bob Dyan, The great white wonder, ou GWW. Dylan, que já se tornara um mito popular americano, vivia recluso desde 1966, em West Saugerties, no interior do estado de Nova Iorque, próximo a Woodstock, desde um acidente de moto, de que nunca se soube com certeza a real gravidade.
Este momento coincide com a lendária turnê de Dylan à Europa, quando, pela adesão ao rock and roll, foi chamado de Judas durante uma apresentação na Inglaterra. Bob Dylan tornara-se “Bigger than life”, literalmente, “maior do que a vida”, uma expressão sem equivalente em português, significando, grosso modo, que sua estatura enquanto ídolo tomara proporções que iam muito além do real. No autobiográfico Crônicas Vl.1, Bob Dylan revela os métodos que utilizou para que se ver livre do mito, e afastar os fãs e dylanólogos que chegavam a revirar as latas de lixo de sua casa à procura de possíveis revelações sobre o artista. Um destes era entrar num bar, pedir uísque e derramar sobre a própria cabeça, apontar armas para intrusos era outro. Em 1967, retomou a música.
Até voltar aos estúdios, com o LP Nashville skyline, em 1969, Bob Dylan, com um grupo de músicos, americanos e canadenses, que depois seriam conhecidos como The Band (Robbie Robertson, Garth Hudson, Rick Danko, Richard Manuel e Levon Helm), gravou dezenas de horas de música, no porão da casa onde ele morava com a família. Foi trechos deste material que foi incluído no citado The great white wonder, o primeiro bootleg a ultrapassar a barreira do milhão de cópia vendidas. Numero estimado, já que um mesmo bootleg pode ser relançado por outro selo clandestino com novo título, e assim por diante. O álbum tornou-se um clássico do gênero, e incentivou o surgimento de bootlegs dos Beatles, Rolling Stones e outros grupos do mesmo porte. Somente em 1975, foi que a CBS (atual Sony Music) decidiu lançar parte das gravações que Bob Dylan e The Band fizeram oito anos antes.
The basement tapes, um álbum duplo em vinil, foi tão bem elogiado, quando bem vendido. Algumas canções do disco foram consideradas das melhores que Bob Dylan escrevera: I shall be released, The wheels of fire, Tears of rage, Quin the esquimo), You ain’t going nowhere. Um lote de 18 canções daquela sessões forma editadas, e liberadas para gravações por nomes como Manfred Man, The Byrds, Brian Auger, epal propria The Band. Dylan, anos mais tarde, diria que não gostava do Basement tapes, que ele e The Band editaram as canções como demos para artistas que as quisessem gravar. Mas, além do que veio à tona no álbum duplo lançado pela CBS/Columbia, as horas e horas de gravações esperaram até este ano para o seu “i shall be released”. No mês passado, uma anunciada continuação da série bootleg de Bob Dylan chegou às lojas, e às plataformas de venda e audição de música digital a caixa The bootleg series Vol.11 The basements tapes complete. Meia dúzia de discos (no caso de CD) com dezenas de canções inéditas, trechos de músicas, embriões de outras músicas, versões de canções de Woody Guthrie, Johnny Cash, Elvis Presley, velhos blues, canções de domínio público, trechos de conversas. Nem sempre com a melhor qualidade sonora, mesmo depois dos tapes masterizados.
Assim como acontecera até o acidente (que alguns biógrafos até mesmo duvidam que tenha acontecido), Bob Dylan voltara a compor com voracidade. É o que torna estes discos fascinantes. O artista recompondo-se, reconciliando-se com sua arte, aceitando a tarefa que estava além de sua vontade. Há 47 anos, especulava-se o que estaria Dylan criando no porão de casa. Finalmente as 139 canções gravadas naquele curto espaço de tempo estão disponíveis para serem ouvidas, analisadas, cantadas e decantadas, lidas as letras nas entrelinhas. Quase meio século depois de ter renegado o papel de farol de uma geração, Bob Dylan continua cada vez mais um mito, porém pela música. Estas 139 sobras contribuem muito para apreender a obra de um gênio da música popular.