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Elza Soares: "Se não fosse a música eu não resistiria"

Cantora volta a se apresentar no Recife depois de quatro anos

JOSÉ TELES
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Publicado em 17/01/2015 às 6:00
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“Lupicínio foi o compositor que me deu vida como ser humano. Quando ele me deu Se acaso você chegasse, me deu condições de morar bem, e criar meus filhos”, ressalta Elza Soares na entrevista que concedeu para divulgar o show A carne. Ela estará hoje, na sua segunda apresentação no Teatro de Santa Isabel, dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. A citação a Lupicínio justifica-se: ela acabou de gravar imagens para um DVD do espetáculo em que canta um repertório de canções do autor gaúcho.

A eterna gratidão a Lupi pode ser entendida nesta revelação feita pela cantora à Revista do Rádio, em abril de 1960, quando estava nas paradas do Brasil inteiro com Se acaso você chegasse: “Casei-me aos 13 anos de idade. Um ano depois já era mãe. Dos meus sete filhos, três morreram. Restam quatro para sustentar. Se foi difícil o tempo em que o meu marido estava vivo, pior agora quando me encontro viúva, Rodrigues”. O título enfatizava ainda mais a entrevista: “Campeã da bossa nova é viúva e mãe de sete filhos”.

Elza Soares entrava em cena mostrando o lado avesso do Brasil que se candidatava a um lugar entre as nações modernas e civilizadas da segunda metade do século 20. No modelo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, estavam a indústria automobilística, a nova capital Brasília, e a bossa nova, do sorriso, do amor e da flor, cantada e consumida por brancos da classe média. Elza Soares vinha lembrar que não era bem assim.

Ainda por cima, gostava de enfatizar sua cor. Era negra e se orgulhava disto. Numa época em que cantoras eram preferidas da Marinha, do Exército, ela dizia que queria ser a preferida dos negros brasileiros. Não por acaso, seu segundo LP, chama-se A bossa negra de Elza Soares (1960), e não é um disco de bossa nova. Quando ela começou a carreira, embora fosse grande o número de artistas negros no rádio brasileiro, para se referir a eles usavam-se expressões que supostamente não ofendiam as “pessoas de cor”. “Colored”, por sinal era uma das preferidas: “O racismo é um câncer. Ele ainda está aí, como a homofobia, ou a luta da mulher para conseguir o seu lugar. O negro atravessa a rua sabendo que do outro lado existe um racista. Mas o racismo não me afetou, sou maior do que isso”, diz a cantora, que em 1963, em ritmo de bossa cantava Nego tu, nego vós, nego você.

A cantora, de 77 anos, chega à sala de entrevistas de um hotel em Boa Viagem amparada por dois rapazes que trabalham com ela. Elza Soares fez duas delicadas cirurgias na coluna há menos de um ano: “Colocaram 17 pinos do cóccix até o pescoço. O nome do meu disco, onde tem esta música, de Seu Jorge e Marcelo Yuka, A carne, que é o show que estou trazendo para vocês, cita os versos da canção: A carne mais cara é a carne negra”.

Muda o assunto para lembrar os jornalistas assassinados na França por fundamentalistas muçulmanos, e fala de um Recife onde ela já morou, no final dos anos 70, quando o filho Garrinchinha era pequeno. Um Recife cada vez mais distante, onde seu amigo Capiba a levava à casa de Nelson Ferreira, para uma cabidela no restaurante O Buraco de Otília, na Rua da Aurora. E de Naná Vasconcelos: “Ele me colocou no palco do Marco Zero no Carnaval com 500 batuqueiros”, ressalta.

A carne é um dos três shows que Elza Soares tem montados atualmente. Além deste e da homenagem a Lupicínio, tem o A voz e a máquina, apresentado com dois DJs, Ricardo Muralha e Bruno Queiroz, que diz ter inspiração em Chico Science. Mas está maquinando pelo menos mais uma trinca de espetáculos. Cantar na íntegra seu clássico Bossa negra e um de jazz. Confessa-se fanática por Chet Baker, quer cantar Louis Armstrong, e lembra que substituiu Ella Fitzgerald em um show na Itália, onde morou durante quatro anos, durante seu conturbado romance com Garrincha, quando o país inteiro apontou o dedo em riste para ela, a destruidora de lares. Tornando o ar do Brasil irrespirável para o casal.

Um dos muitos percalços pelos quais passou na vida, incluindo aí pressões durante o regime militar. Elza aproveita para alfinetar vozes que começam a clamar pela volta da ditadura: “São loucos, não sabem o que é isso. Quem passou por uma sabe o que é. Precisamos de liberdade. Todos somos livres”. Não por acaso, o repertório do show A carne está Opinião, de Zé Kéti “Podem me bater, podem me prender/que não mudo de opinião”). Alguém pergunta sobre Antônio Maria. Elza lembra que o primeiro texto no rádio foi escrito por ele, que frequentava sua casa. Diz que vai incluir Antônio Maria no show: “Acho que vou é fazer um show inteiro cantando Antônio Maria”. De olho nos relógios, são os jornalistas que antecipam o final da entrevista. Por ela, passariam a noite conversando, principalmente sobre seu assunto predileto, música: “Eu vivo música, eu como música, se não fosse a música não resistiria às minhas perdas”.

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