Nenhum outro artista da música popular teve a obra tão amplamente disponibilizada quanto Bob Dylan, na série Bootleg Series, iniciada em 1991, e encerrada esta semana com The Cutting Edge 1965 1966, Bootleg Series vol.12 (Sony Music/Legacy), que chega às lojas físicas e digitais em formatos que vão do álbum duplo à edição de luxo especial, com 18 discos, numa edição limitada a cinco mil unidades. A série é fechada com os três álbuns mais influentes de Dylan: Bringing It All Back Home (1965), Highway 61 Revisited (1965) e Blonde on Blonde (1966).
Até 1964, Bob Dylan era louvado como a renovação da música folk americana. Mas que isto, imensamente talentoso para garantir a continuidade da tradição. Súbito, o jovem de 23 anos que se considerava absorvido pelo status quo folk, aparece empunhando uma guitarra num palco sagrado do gênero, o Newport Folk Festival, e provoca um novo cisma de gerações. Diferentemente do que fez Elvis Presley e o rock n roll dos anos 1950, o racha não foi só estético, mas igualmente ideológico.
O que mais impressiona no The Cutting Edge 1965 1966, é a quantidade de outtakes, ou seja, as sobras das sessões de gravação. Considerada a "música do século" pelos americanos questionável, claro, até porque, no século passado, os americanos criaram grandes músicas Like a Rolling Stone preenche um CD inteiro, com 17 versões diferentes, com mais três versões em outro disco.
Mais do que impressionante, foram assombrosos a quantidade, a qualidade e a velocidade com que Dylan, em apenas dois anos, compôs e gravou canções que mudaram conceitos, estenderam limites, incitaram movimentos, insuflaram rebeliões e levaram muita gente a repensar suas vidas (Like a Rolling Stone foi a síntese deste período da música de Dylan), em três discos devastadores (quatro, se levarmos em conta que Blonde on Blonde é um álbum duplo).
Discos tão perfeitos que toda a obra de Dylan, daí em diante, teria esta trinca como parâmetro. A critica levou anos para entender que o período 1965/1966 foi único, não apenas na obra de Dylan, mas de qualquer compositor popular contemporâneo. Apenas os Beatles chegaram próximo, com Rubber Soul, Revolver e Sgt. Peppers, entre 1965 e 1967, mas sem a mesma profundidade e inquietação. Dylan só voltaria a ter sua genialidade reverenciada e aceita, sem comparações com o passado, a partir de 2001, com o álbum Love and Theft. Mesmo assim a trinca de álbuns revisitados e expandidos em The Cutting Edge ainda paira sobre a música americana como monólitos negros, causando espanto e perplexidades aos que se debruçam sobre eles 50 anos depois.
(leia matéria na íntegra na ediçao impressa do Jornal do Commercio)